Os Índios da Meia Praia

Nacional / Teoria

Foto: Festa do Avante

Zeca Afonso ajuda-nos a introduzir neste texto a temática incontornável dos vários processos eleitorais deste ano, e de tudo que faz falta compreender haverá algo desde já a reter: o PCP é a única força política que propõe a transformação da sociedade e a CDU a coligação, que em contexto eleitoral, responde aos anseios da larga maioria da população.

Das eleições acabadas do resultado previsto / Saiu o que tendes visto / Muitas obras embargadas / Mas não por vontade própria

Por força desta estrofe olhamos para as recentes Eleições Legislativas Regionais na Madeira e através do seu resultado perspectivamos os próximos actos eleitorais. Marcelo Rebelo de Sousa, no seu lugar de conforto, não tanto o de presidente, mas antes o de comentador, afirmou “os madeirenses preferiram continuidade ao que seria um risco de mudança”, e por aqui mesmo começaremos, isto é, desmentindo o omnipresente escoliasta. O povo madeirense não preferiu coisíssima nenhuma, está sim refém de um regime que apresenta como seu legado a região com maior taxa de pobreza do país, onde ainda se assinala, para além da privação material e social, a maior desigualdade na distribuição do rendimento. Neste cenário insular propaga-se a política do medo e da perseguição política, o trabalho é instrumentalizado para (ainda um pouco mais) fazer pender a balança da correlação de forças estabelecida entre quem manda e quem é mandado para o lado da classe política dominante, que mora no bolso dos poderes económicos instituídos e não escrutinados. Por outro lado, o que se infere das declarações do Presidente da República, imprimidas num tom genérico de positividade e de normalização da falta de ética, moral e valores na vida pública em nome de uma estabilidade política (que mais não é do que estabilidade para a classe dominante), é a (não tão) mensagem subliminar que nas próximas Eleições Legislativas o ideal era ver esse procedimento repetido.

De tudo isto, e voltando à estrofe primeira, o que importa afirmar frontalmente é que, ao contrário da utopia da esquerda liberal ou da pretensa fachada democrática da direita, outro resultado global numa democracia burguesa não seria, nem será possível. Não é realista esperar que num contexto capitalista se veja transposta para a composição parlamentar uma assinalável representatividade operária ou proletária, ou proletarizada, dando bom seguimento a uma tradução real da constituição da sociedade portuguesa (ou tanto quanto valha de outra qualquer).

Contudo não é esta percepção da realidade uma que pretenda impor um desânimo generalizado sobre os processos democráticos, primeiro porque se quer deixar bem claro que a intervenção política e democrática vão bem para além dos momentos eleitorais, como veremos na próxima estrofe, segundo e primordialmente, a bem deste texto, porque serve para sublinhar que cada voto conta e por tanto contar deve provir de uma profunda reflexão de a quem servirá, se aos interesses de quem o deposita ou se aos do que sempre ameaçam com a antiga cantilena do voto útil, que (não) curiosamente são os mesmos que nos dizem e contam da impossibilidade de valorizar salários enquanto em simultâneo se preparam para desviar os contributos desses salários do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social para o histerismo de uma guerra que não é. Porque, a bem da verdade, útil seria a CDU ter elegido um comunista (faltaram 65 votos) que fosse farol no pântano parlamentar da Madeira, porque útil será que tantos mais deputados possam vir a eleger-se pelas listas da CDU no pântano liberal que se tornou a Assembleia da República.

Aos bravos que na Madeira não abdicaram, e não abdicarão, de lutar por uma região melhor, mais desenvolvida e solidária, uma saudação. A suaresistência é também a esperança do povo madeirense.

Mas não por vontade própria / Porque a luta continua / Pois é dele a sua história e / O povo saiu à rua

Se de pés bem assentes na terra e a cabeça no sonho da construção de um novo mundo sabemos da impossibilidade de uma transformação imediata, sobretudo através da eleição burguesa, é fundamental relembrar da importância da representação institucional de quem configura a vanguarda organizada de todo um povo. Cada voto é determinante para promover uma correlação de forças que permita uma acérrima intervenção parlamentar de classe, importando saber que cada braço que risca o voto para que dos seus, e não de outros, se elejam tem para lá da urna momentos de participação e de organização dos quais não deve, em circunstância alguma, renunciar.

Só algo apavora mais um capitalista do que um trabalhador, e isso é um trabalhador organizado. A organização colectiva e de classe é uma ferramenta indispensável num contexto da ditadura burguesa, seja pela sindicalização ou pela organização partidária, pois que a história comprova que as únicas frechas abertas no muro capitalista, que permitem avanços e conquistas sociais, laborais, culturais e económicas, resultam do ininterrupto processo de luta colectiva, nas ruas e nas instituições democráticas.

A única reflexão que, quem conscientemente assume o seu papel de classe e percepciona a realidade da sua condição social, deve ser feita é sobre quem em momentos eleitorais preconiza, por um lado, a transformação do mundo e, por outro, quem materializa na sua intervenção política, e parlamentar, a defesa dos seus interesses. Posto isto reforça-se da importância da soma de cada voto unitário, que construa essa frente revolucionária, sem ilusões, em diálogo franco com a verdade e a realidade, um voto de resistência à tentação estética da esquerda liberal, que suporta em última análise a tese de uma humanização (impossível) do sistema capitalista, e que contrarie o avanço das forças reacionárias, umas desprovidas, inclusivamente, da sua oportunista faceta social-democrata outras de carácter fascista e neoliberal.

Mandadores de alta finança fazem / Tudo andar p’ra trás / Dizem que o mundo só anda / Tendo à frente um capataz

A luta é desigual. A classe dominante não lança os seus tentáculos apenas e só para o sistema político-partidário, sustentando economicamente os vários projectos políticos de seu interesse, muitos do seu próprio fundamento e origem. A expressão ‘donos disto tudo’ é bem representativa da complexa engrenagem capitalista que tudo contamina com o objectivo de ter ao seu dispor todas as componentes materiais e imateriais que promovam a sua sustentação e conservação. Num campo fértil de imoralidade e profundamente antidemocrático um conjunto de concepções intácteis são prática comum do poder dominante na relação que estabelece, e pretende impor sem contraditório, com a força de trabalho, portanto com a classe trabalhadora. Em primeiro lugar a relativização da verdade como conceito amplo e manipulável, tornando-a uma mercadoria valiosíssima ao serviço de narrativas em redor das circunstâncias históricas e materiais que justifiquem os meios e, sobretudo, os seus fins. A contextualização é desaconselhável e os processos de raciocínio, análise crítica e científica são não só descredibilizados, mas sobretudo penalizados no espaço público de intervenção e no lugar-comum de opinião. Este muro levantado entre as duas verdades, a que cresce de uma necessidade argumentativa do capital e a que nasce do materialismo dialéctico (e que outra não existe de facto) põe em confronto os processos de chantagem, manipulação e medo com a resistência e a realidade. O divisionismo que resulta desta contradição é desfavorável em toda a circunstância às lutas em desenvolvimento e aos próprios considerandos de democracia popular, criando – toscamente resumido – duas estirpes na classe trabalhadora, a que se organiza, resiste e se propõe a avançar e uma que se acomoda à serventia, e, em plena dissonância cognitiva, alimentada pela falsa promessa de que mediante o seu empenho para essa concretização um dia poderá compartilhar com o seu dono o lugar de exploração, opressão e acumulação de riqueza. Materializa-se às costas dos seus capatazes, ou cães-de-fila, esse inequívoco projecto do capital de estupidificação das massas, com particular relevância para o domínio absoluto da informação e transmissão de conhecimento, portanto dos órgãos de comunicação social, no controlo total instituições financeiras que saqueiam o povo através da sua intermediação na dívida ou na precária custódia dos recursos financeiros individuais, e nos sectores estratégicos dos meios de produção que em mãos privadas acumulam pornograficamente lucros de difícil compreensão à razão humana. O êxito desse processo traduz-se no surgimento de um restrito grupo de milionários e multimilionários, sublinhando-se que o que importa entender é à custa de quê e de quem que isso acontece, isto é, se não tem existido um crescimento económico efectivo e significativa esta concretização é necessariamente um reflexo do aprofundamento da desigualdade feito às expensas do valor da força de trabalho e de uma menor redistribuição da riqueza. Sucintamente uma maior e indevida acumulação de riqueza é em simultâneo o aumento generalizado da pobreza. E que ninguém duvide que tendo o mundo à frente um capataz o avanço é no sentido contrário aos anseios de grande parte da população, independentemente do grau de consciência colectiva desse dado momento.

São estes os pérfidos pilares da democracia liberal, entenda-se a ditadura da burguesia, por oposição ao que propõe a ditadura do proletariado, ou antes a concepção de democracia popular. Com isto tudo dito, não é objectivo a relativização da importância da representação parlamentar, mas antes o contrário, que com as dificuldades impostas e os obstáculos evidenciados essa representatividade da classe trabalhadora deve sair reforçada tanto quanto possível, e que faz falta determinar que interesses queremos que sirva parte desse regime parlamentar actual, inserido num contexto capitalista avançado. A luta continua e é dela a sua história, é certo, e perante as próximas circunstâncias eleitorais todos votos contam e cada voto deve ser ponderado em função das aspirações de classe colectivas e individuais.

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