A Revolução bolchevique de 1917 e o transformador processo de construção socialista que se lhe seguiu afectou profundamente todo o século XX e contribuiu para, em todo o mundo, serem criados poderosos movimentos de libertação nacional e social – no seio do qual o movimento comunista internacional, a que Outubro deu origem, desempenhou um papel crucial e decisivo – que transformou a face do nosso planeta.
A Revolução que abalou o mundo teve profundas e impressivas consequências nos direitos humanos e sociais e contribuiu para mudar o papel histórico e a vida dos operários, das classes exploradas e oprimidas, transformando as suas vidas e toda a estrutura jurídica e social não só na então União Soviética como em toda a Europa.
As mulheres conheceram, em resultado desta Revolução, alterações que marcaram uma nova etapa no reconhecimento dos seus direitos quebrando com séculos de discriminação, violência e desumanização contra si, contribuindo, em simultâneo, para o reforço da luta operária em todo o mundo e para a consciencialização que a emancipação humana apenas acontecerá quanto todos os explorados se libertarem dos seus exploradores, numa luta que, tendo diferenças, é feita marchando lado a lado – mulheres e homens.
A reescrita da história, no ano em que se completam 100 anos sobre a Revolução de Outubro, será mais intensa, pretendendo apagar as conquistas resultantes não só da Revolução, mas sobretudo do processo de construção socialista daí decorrente. Pretendo, assim, contribuir, na medida das minhas capacidades, para a discussão sobre este marco histórico, com uma série de textos que incidirão essencialmente sobre a chamada «questão feminina» e o impacto da Revolução de 1917.
I – A reflexão comunista e a situação da mulher antes da Revolução (1ª parte)
O quadro político e social pré-revolucionário estava marcado não só pela forte exploração da classe trabalhadora, legitimada por impérios colonialistas e pela primeira grande crise em que o imperialismo lançou o planeta como pelos milhões de mortos, pela fome e miséria decorrentes da 1ª Guerra Mundial. A situação da mulher, no plano jurídico, correspondia (embora nunca na exacta medida) ao nível de brutal discriminação e exploração a que estava sujeita.
Nos EUA, a Declaração da Independência era clara na sua posição de superioridade do homem branco proprietário. Perante as reivindicações de igualdade, John Quincy Adams afirmou não estar disposto a abrir mão do sistema «masculino».
A própria Revolução Francesa, em 1789, repetia a fórmula na Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, sendo à data a utilização da linguagem propositada e literal: a garantia de direitos dos homens era mesmo a garantia dos direitos dos homens e não da humanidade como hoje é amplamente entendido. Para Jean-Jacques Rousseau, ao homem deveria caber o mundo da política (e do trabalho produtivo) e à mulher o restrito espaço do lar (como se pode aferir no capítulo dedicado ao casamento no livro Emílio ou Da educação onde se lê “a rigidez dos deveres relativos a ambos os sexos não pode ser a mesma. Quando a mulher se queixa a esse respeito da injusta desigualdade que o homem institui, ela está errada; tal desigualdade não é uma instituição humana, ou pelo menos não é obra do preconceito, mas da razão”.
Com as lutas operárias que varreram os Estados Unidos, sempre impulsionadas por um poderoso movimento sindical, sobretudo na exigência da redução da jornada de trabalho foi potenciada a disseminação das lutas mais gerais das mulheres a par do movimento sufragista.
Não obstante, a luta pelo voto feminino foi sempre a principal reivindicação no horizonte das feministas. As suffragettes (e aqui aconselha-se o filme homónimo lançado em 2015 e o telefilme Iron Jawed Angels 2004, a meu ver, muito mais interessante) surgem em Inglaterra em 1897, com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino por Millicent Fawcett (1847-1929).
Nos EUA, em 1840, Lucretia Mott e Elizabeth Cady Stanton são impedidas de participar da Convenção Mundial Anti-Escravidão realizada em Londres levando-as a organizar a Convenção das Mulheres nos EUA e em 1848, em Seneca Falls dá-se a primeira Convenção dos Direitos da Mulher. No ano seguinte, a primeira Constituição de um estado, Califórnia, estende o direito de propriedade para as mulheres. Em1857, a lei do Direito à Propriedade para a Mulher Casada passa no Congresso dos EUA passando a mulher casada a ter o direito de processar, ser processada, fazer contratos, herdar e legar propriedade.
Em 1866, Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony formam a Associação Americana para a Igualdade de Direitos, uma organização dedicada ao objectivo de direito ao voto para todos, independentemente do sexo ou raça: “Aos homens os seus direitos e nada mais; às mulheres os seus direitos e nada menos!”. Estas mulheres fundam posteriormente a Associação Nacional para o Sufrágio Feminino (NWSA), uma instituição mais radical, para atingir o voto através de emenda constitucional, bem como empurrar as questões de outros direitos da mulher. Em 1890 a Federação Americana do Trabalho declara apoio ao voto feminino. Entre 1890 e 1925, mulheres de todas as classes e origens entram na vida pública e conquistam o direito ao voto, estado a estado.
Em Portugal, apenas em 1911 aproveitando a não especificação do sexo na lei, Carolina Beatriz Ângelo votou, defendendo sempre o direito ao voto no quadro da sua classe social, ao mesmo tempo em que advogava a exploração das mulheres operárias: o direito ao voto seria da mulher branca e proprietária. Em 1926, à mulher portuguesa «chefe de família» foi reconhecido o direito de voto nas eleições para as juntas de freguesia – não para as câmaras municipais –, sendo a sua capacidade eleitoral determinada unicamente em função da chefia da família. Em 1931, o Decreto n.º 19 694, de 5 de Maio determinou que «as mulheres, chefes de família viúvas, divorciadas ou separadas judicialmente e tendo família a seu cargo, e as mulheres casadas cujo marido está ausente nas colónias ou no estrangeiro» podiam pertencer a corporações administrativas inferiores.
Ou seja, muito estava por fazer e a generalidade dos movimentos exigiam apenas o voto da mulher no quadro do sistema capitalista, privilegiando a burguesia no exercício destes direitos.
Para August Bebel (1840-1913), operário e militante social democrata alemão, na sua obra A mulher e o socialismo, de 1879, reconheceu as especificidades da luta das mulheres afirmando que estas “sofrem duplamente: de um lado sofre sob a dependência social dos homens, a qual se suaviza, porém não se elimina com a igualdade formal de direitos perante lei, e, de outro lado, devido à dependência económica em que se acham as mulheres em geral”. “As irmãs adversárias [referindo-se às burguesas e operárias] têm em maior proporção que o mundo masculino (…) uma série de pontos em comum ao qual podem dirigir sua luta (…)” sublinhando assertivamente que para os socialistas “não se tratava apenas de realizar a igualdade de direitos da mulher como o homem no terreno da ordem social e política existente, o qual constitui o objectivo do movimento feminino burguês, mas de eliminar todas as barreiras que fazem que o homem dependa do homem e, portanto, um sexo ao outro (…). Daí que quem persiga a solução total da questão feminina deve unir-se a quem tem inscrita em sua bandeira a solução da questão social e cultural para toda a humanidade, ou seja, os socialistas”.
“Para nós socialistas, o direito de voto das mulheres não pode ser o objectivo final, diferentemente das mulheres burguesas, porém consideramos a conquista deste direito como uma etapa bastante importante no caminho que levará até o nosso objectivo final”.
Clara Zetkin (1857-1933) foi a primeira grande líder feminina do movimento socialista alemão e internacional. Em 1907, em Estugarda num congresso da Internacional Socialista afirmou que “Os partidos socialistas de todos os países têm o dever de lutar energicamente pela conquista do sufrágio universal feminino (…) direito que deve ser reivindicado vigorosamente em todos os lugares de agitação e no parlamento” sublinhando que o “reconhecimento do direito de voto ao sexo feminino não suprime a contradição entre exploradores e explorados (…). Para nós socialistas, o direito de voto das mulheres não pode ser o objectivo final, diferentemente das mulheres burguesas, porém consideramos a conquista deste direito como uma etapa bastante importante no caminho que levará até o nosso objectivo final”.
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