A: apropriação cultural

Teoria

A: Apropriação Cultural

Tudo é cultura e toda a cultura é apropriada, pelo que não pode nem deve ser considerada propriedade de ninguém. Não há culturas “autênticas” nem muito menos “puras”: esse é um mito da extrema-direita. Os portugueses são culturalmente berberes, árabes, fenícios, romanos, franceses, ingleses, visigóticos, gregos e bantus. O multi-culturalismo é, portanto, a antítese da apropriação cultural.

Claro que é sempre ridículo quando um famoso de Hollywood se mascara de nativo americano. Claro que a indústria da moda insulta a humanidade com a tendência “refugee chic”. Mas o verdadeiro problema não é a insensibilidade ou a ignorância da Adele ou da Katy Perry. O debate sobre a apropriação cultural redunda, quase sempre, numa discussão inócua, o que é que os brancos não deviam fazer, quando a discussão que importa não tem a ver com os comportamentos individuais, mas com as condições e os meios na raiz dessas desigualdades. Estes são meros sintomas de uma dinâmica de poder político e económico que cilindra culturas periféricas para depois as reciclar como caricaturas de si mesmas para consumo na metrópole. Mas o que interessa não é se os brancos ricos gostam de música negra ou se os indianos usam penteados jamaicanos. O que nos deve preocupar é que o imperialismo retira aos jamaicanos os meios culturais, sociais e económicos para afirmarem a sua cultura em condições de igualdade com os europeus. O problema é que a hegemonia cultural do capitalismo transforma a alma da cultura dos povos em mercadorias sem alma. E isso não se combate com o fechamento das culturas em redomas de pureza étnica, evitando comer comida japonesa ou policiando a roupa e a linguagem uns dos outros. É preciso combater a globalização do capitalismo e do mercado com a globalização do socialismo, da partilha, da compreensão e da solidariedade.

Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um instrumento rápido para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.

2 Comments

  • Raquel Lima

    28 Maio, 2021 às

    Este artigo é contraditório, ou carece de aprofundamento crítico, porque dissocia o “famoso de Hollywood” e a Katy Perry de um sistema imperialista fundado na supremacia branca e no capitalismo racial. Portanto o que eles fazem não é apenas ridículo ou insultuoso, mas o exercício pleno desse sistema imperial, desde o seu reforço, acumulação de capital simbólico e relativização das desigualdades sociais. Até teria sido um bom artigo sem o primeiro parágrafo, sem o eufemismo sobre o significado de apropriação cultural e sem a sugestão de que quem a questiona procura o “fechamento das culturas em redomas de pureza étnica”. Falar de apropriação cultural serve para reivindicar políticas de reparação que não permitam que sejam sempre os mesmos a ter o reconhecimento simbólico e material sob as pretensas sociedades multiculturais de que fazem parte.

    • Vasco Macedo

      29 Maio, 2021 às

      Olá Raquel,

      Não considero, sinceramente, que o artigo dissocie uma coisa da outra, aliás o ponto que está a ser defendido é que é preciso ter em consideração as questões sistémicas do problema sem o deixar cair para uma questão do foro pessoal ou particular de cada um consigo mesmo. Assim como assim, acho que o que está a ser proposto é bastante consentâneo e, se me permites, mais coerente do que o que tu propões. Primeiro, porque a ideia de reparação implica a possibilidade de uma absolvição moral por parte daqueles que proporcionaram essas desigualdades que bem identificas e, obscenamente, arroga-se no direito de monetarizar um mais que necessário gesto de reconhecimento pela sua responsabilidade.

      Segundo, porque, ao permitir essa absolvição, legitima a continuação do sistema económico vigente tal como ele está e proporciona, se assim quiseres, uma via para a perpetuação dessas desigualdades. Pensemos por exemplo no que acontece quando alguma empresa petrolífera é condenada a pagar uma indemnização quando acontece um derrame de petróleo em alto mar. Será que o valor económico da indemnização vai possibilitar reparar os impactos sobre o ecossistema? Mais, será que isso é um ponto de partida para o fim da extração de combustíveis fósseis daquela forma? Ou ajudará, afinal, a indemnização a que a empresa lave o seu nome e consiga continuar a exercer a sua actividade até nova catástrofe?

      Terceiro, acho que aquilo que o artigo propõe quando fala em dotar os povos oprimidos de ‘meios culturais, sociais e económicos para afirmarem a sua cultura em condições de igualdade com os europeus’ é bastante mais lato que apenas uma transferência monetária. Trata-se de uma solução de longo prazo que permita transformar por completo o sistema económico vigente de forma a garantir harmonia e igualdade entre os povos, e não apenas uma solução de curto-prazo que não só não inviabiliza o surgimento de novas desigualdades ou a apropriação dos recursos dos povos por elites cleptocráticas e/ou capitalistas, como também empodera mais que um mero reconhecimento simbólico.

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