A bancada tem salvação, revoguem o cartão!

Nacional

Discute-se, a partir de hoje na Assembleia da República, a revogação do Cartão do Adepto, medida adoptada com a aplicação da lei 113/2019, em alteração à lei 39/2009, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos.

As alterações introduzidas há dois anos – que mereceram, na altura, apenas a abstenção do PCP e do PEV – vieram aumentar o nível de vigilância e perseguição aos adeptos nos locais dos espectáculos desportivos, com especial relevância e incisão no futebol profissional. A criação das “zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos”, a pretexto da identificação mais célere dos supostos autores de actos de racismo, xenofobia e intolerância, mais não veio do que sublinhar um estigma inaceitável que tem vindo a ser construído sobre os adeptos que se organizam e acompanham os seus clubes.

“Arruaceiros”, “hooligans”, “violentos” e “criminosos” passaram a ser adjectivos recorrentes na comunicação social e na opinião pública, formatada pela ideia de que são os adeptos organizados que trazem a violência para os estádios, pondo em causa a segurança dos restantes, e que a estes não lhes importa o desporto ou o clube que apoiam, mas sim interesses obscuros e criminosos que não condizem com o espírito do desporto.

O cartão do adepto, instrumento que dá acesso a essas zonas especiais, devidamente separadas no recinto desportivo e único espaço onde se podem exibir materiais alusivos aos grupos organizados de adeptos, mais não passa do que um cadastro invasivo e inconstitucional, que tenta vigiar e punir comportamentos tão naturais quanto o apoio fervoroso a um clube, ao seu símbolo e identidade. E mais, aprofunda a estigmatização dos adeptos do futebol popular, tentando insistir na ideia de que a sua necessidade de se organizarem socialmente enquanto grupo significa a criação de grupos violentos e criminosos.

Esta estigmatização não nasce com estas medidas, mas agrava-se e acentua-se num processo de crescente e constante vigilância, perseguição e assédio sobre adeptos, especialmente se organizados, o que vem aumentar o clima de tensão e violência nos estádios e, consequentemente, a afastar adeptos das bancadas. Os dispositivos policiais e o aparato das chamadas operações de segurança que se observam no decorrer de um jogo de futebol profissional só se podem justificar com uma necessidade preocupante de afirmação da força pela força por parte das instituições de segurança.

Em nome do combate à violência, as forças policiais actuam com cada vez mais repressão sobre os adeptos, instigando o que o aparato policial supostamente pretende eliminar e prevenir, pretendendo, por um lado, garantir uma aparente ideia de segurança – própria da prevenção geral positiva – para convencer a opinião pública da sua necessidade; e, por outro, reforçando estigmas e preconceitos com determinados grupos que, não ao acaso, passam assim a ser representados como “personas non gratas” no desporto.

Ora a violência que as forças de segurança trazem para os estádios, usando e abusando dos meios e da força à sua disposição e em claro contraste com os dos adeptos – cuidadosamente revistados à entrada de cada jogo – em nada pode contribuir para o firme combate que é necessário dar à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância no desporto e fora dele. Aliás, os mecanismos para punir criminalmente o que é crime já existem e estão à disposição da sua correcta aplicação, sem necessitar de generalizações e estereótipos.

O racismo e a xenofobia não têm as suas raízes no desporto, pelo que ignorar este fenómeno social, não agir nas suas causas e ainda atacar um dos espaços mais determinantes na construção de valores de solidariedade, união, respeito e igualdade, como é o desporto popular, é querer mascarar a escalada da intolerância de um sistema que cada vez mais vigia e pune as classes mais desfavorecidas.

Se a transformação dos clubes em empresas e do futebol num dos mais rentáveis negócios para o capital financeiro já contribuíram para o afastamento das camadas populares dos estádios, o cartão do adepto veio tentar dar o último empurrão para sepultar o futebol popular.

Mesmo assim, a resistência dos adeptos tem-se feito sentir em todo o país, com diversas acções de boicote a este cartão inventado para o futebol-negócio, com diversas manifestações desde as alterações introduzidas à lei e que se intensificaram nos últimos meses, com o regresso do público aos estádios. Ainda ontem, a Associação Portuguesa de Defesa do Adepto (APDA) divulgou a adesão de 31 grupos de apoio, representando 25 clubes, a um protesto nacional organizado, numa expressão de profundo repúdio em representação dos adeptos portugueses. Em uníssono, deixaram um aviso aos responsáveis políticos chamados a resolver, de uma vez, esta repressão, com um: “A bancada tem solução, revoguem o cartão!”.

E o que não pode faltar nesta justa luta é a adesão de todos, adeptos ou não, que entendem ser tão determinante dar firme combate ao racismo e à xenofobia em todas as suas formas, como à criminalização das expressões da cultura e identidade de determinados grupos e classes sociais, cada vez mais punidas e perseguidas em nome da imposição dos interesses do capital e da verdadeira violência que – este sim – exerce sobre as camadas populares.