A Cova da Moura não caminha só

Nacional

Costuma-se dizer que na Amadora há bairros em que a polícia não entra, mas não é verdade. Nesses bairros, o que não entra é a Constituição da República Portuguesa. É preciso dizê-lo claramente: a Cova da Moura é um bairro de trabalhadores. Gente que todas as manhãs desce a encosta íngreme de ruas labirínticas para ir levar os filhos à escola e depois, quando há trabalho, ir trabalhar. Quem conhece o Alto da Cova da Moura depressa aprende a admirar a criatividade, a alegria e a solidariedade desta comunidade que, desafiando a exclusão dos governos, a pobreza imposta pelo capitalismo e as condições de vida, tantas vezes miseráveis, consegue ser um exemplo de dignidade para Portugal.

Esta população, por ser maioritariamente negra, pobre e imigrante, vive assediada por vândalos e arruaceiros que, com total impunidade, revistam, questionam, espancam, ofendem, humilham e detêm. Em poucas palavras, a Cova da Moura é a nossa Gaza. Uma bolha temporal onde subsiste o espírito colonial português num pensar, tantas vezes articulado aos ouvidos dos encostados à parede, “vocês têm sorte que a lei não permite, senão seriam todos executados”, numa corrida com os pretos que queriam entrar numa esquadra da PSP, para, vejam só a lata, apresentar queixa dos polícias, numa doce impunidade de saber, que podes ir com a tua tatuagem nazi para dentro do bairro das barracas e começar a disparar contra as mulheres nas varandas e as crianças a brincar e contra tudo o que te apetecer magoar, porque “o lugar de lixo e cães é no chão”

É isto que se passa e não é de agora. E quem mora na Cova da Moura não conta apenas histórias de espancamentos, torturas e assassinatos às mãos da PSP, narra o assédio constante de homens armados até aos dentes que te mandam parar quando vais para casa, que te revistam e te ofendem quando vais trabalhar, que te mandam embora porque não podem fazer nada, mas primeiro ainda levas uma chapada.

Numa destas noites, há pouco tempo atrás, um amigo da Cova da Moura foi detido ilegalmente pela polícia e largado no meio do Monsanto. Não tinha telemóvel e voltou para casa a pé. Quando lhe perguntei porque é que não apresentava queixa ele explicou-me que num tribunal a palavra de um polícia conta sempre mais que a palavra de um africano. No próximo dia 12 de Fevereiro, as nossas vozes valerão muito mais do que a palavra de qualquer racista. Estaremos em frente à Assembleia da República para dizer que em Portugal não há lugar para fascistas e que a repressão policial contra a população da Cova da Moura tem que terminar. Estar em solidariedade com a Cova da Moura e reclamar consequências criminais contra os responsáveis pela brutalidade de 5 de Fevereiro é defender a Constituição, a liberdade e o que resta de democracia. Estejamos presentes: temos ouvidos e lemos, não podemos ignorar.