A cultura do desinvestimento

Nacional

Desdobram-se em discursos pomposos, multiplicam-se em declarações de amor à cultura e às artes, gostam tanto de ouvir orquestras, daquelas cujo maestro é estrangeiro, e de ver um bailado sem pensar em nada. Como adoram sentar-se confortavelmente na penumbra da maior sala de um teatro nacional perante uma peça de Molière, de Pirandello, de Strindberg. Como também não passam sem comentar, de flute em riste, com os outros burgueses, que apreciaram muito este e aquele actor; que o cenário era – Oh! – extraordinário; como complementava o texto o violoncelo de fundo; como se arrepiaram – clássico – quando o veludo vermelho da cortina se ergueu. Pouco importa, então, se os actores são precários e se afogam em recibos verdes, se o violoncelista também é empregado de escritório, se os técnicos de luz e som, mais os figurinistas e os funcionários da bilheteira contam trocos no final do mês para pagar uma renda asfixiante, naturalmente já nos subúrbios. Assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal. É mesmo assim e assim será, desta vez com uma maioria absoluta que nunca ouviu falar em investimento ou em democratização da cultura, ou para a qual o interesse pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores é uma anedota, um capricho, uma utopia de esquerda.

A proposta de Orçamento do Estado para 2023, aprovada na generalidade, só contou com o voto favorável do próprio PS, agora livre e solto para perpetuar a desigualdade que sempre lhe foi querida. Certamente alinhados com a tendência inflacionista, vários órgãos de comunicação, de que é exemplo o Expresso, já se tinham apressado em anunciar que a verba do OE destinada ao sector da cultura corresponderia à enganosa percentagem de 2%, quando, na verdade, ficará ainda aquém do tão esperado 1%.

Os 927,8 milhões destinados ao Ministério da Cultura, em 2022, passam a 1101,6 milhões, em 2023. Considerando estes valores, verifica-se um aumento de 18,7% na verba da cultura, de um ano para o outro. 760,3 milhões correspondem à despesa total consolidada, e 750,6 dizem respeito à despesa efectiva consolidada, no quadro do Programa Orçamental da Cultura. Excluindo a RTP, restam 504,3 milhões e um crescimento de 9,8% face a 2022. Interessa destacar a verba destinada aos “PROJECTOS”, ou seja, toda a produção e criação artísticas, de todas as áreas, encerradas numa única alínea esmagadoramente redutora, e que só por pouco supera os 20% do valor condizente com a despesa efectiva. É esta a verba que verdadeiramente interessa aos trabalhadores da cultura, com taxas de execução, por vezes, abaixo dos 60%. O restante divide-se entre o funcionamento do ministério e respectivas estruturas, museus, teatros nacionais, arquivos, bibliotecas, etc. A DGPC e o Instituto Português do Audiovisual serão, enfim, alvo de um reforço, ainda que insuficiente, e a estas despesas juntar-se-á a da construção de um novo museu, integrado no Centro Cultural de Belém. Um postal da habitual negligência pelo acesso de todos à fruição cultural é, uma vez mais, e como alerta a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, a total ausência de medidas que visem a promoção da leitura, dado o índice baixíssimo que se verifica, em Portugal.

No que diz respeito à legislação, o Orçamento, por norma, cumpre-se. Em matéria de valores e verbas, dificilmente se distingue da ficção. Para quem a criação artística é ganha-pão continuam a escorrer as sobras, pelo que este tímido aumento não significará, de forma alguma, uma melhoria das condições de vida de quem trabalha. E se não o significaria num contexto dito normal, num momento em que se assiste ao aumento, a pique, do custo de vida, muito menos. Os trabalhadores da cultura não se alimentam à base de elogios nem pagam a conta da luz com aplausos. A única cultura que daqui sai reforçada é a do desinvestimento crónico de um sector farto de ser chutado para canto; um sector em que sucessivos governos derramam purpurinas para disfarçar a degradação a que o condenaram; um sector cujos profissionais são constantemente obrigados a procurar empregos alternativos, em áreas que não são as suas, pois os seus não servem para viver; um sector, contudo, teimoso, que vê na luta também teimosa a solução: por 1 e 2 e, depois, 3% que realmente o sejam.