A cultura não é uma santa de altar, ultraterrestre ou uma concepção divina, é a memória identitária dos povos e, portanto, não se configura na sua materialização concreta ou abstracta como um objecto imparcial. A arte, que expressa a tradução cultural de uma sociedade, resulta de estímulos e experiências individuais e/ou colectivas, tem como proponente o Homem, que por sua vez é produto das suas próprias circunstâncias e do modelo de organização colectiva que lhe dá origem, social, política e cultural entenda-se.
Toda a cultura é na sua raiz revolucionária, nunca imparcial ou indiferente, a imparcialidade cultural ou artística, ou a sua indiferença, transformá-la-ia num objecto amorfo, imutável, repetível, previsível e sem valor intelectual, torná-la-ia vazia e oca, abdicando da sua componente essencialmente transformadora, libertadora e política.
A verdade é revolucionária, a revolução é fundamentalmente cultural e, portanto, a cultura é a verdade dos povos e o expoente máximo da sua expressão de liberdade. Facto o é, assim tenham condições políticas para o fazer, que não se dissocia, jamais e sobre circunstância alguma, uma questão da outra, tal é a sua intimidade e correlação. A expressão artística é militante, é democrática, é interveniente, cumpre um papel muito próprio, sempre político.
A centralidade e importância da cultura e da arte ultrapassam a necessidade do conhecimento da factualidade histórica dos povos e do mundo, a que recorremos para um enquadramento e análise científica de um determinado período, ou até de todos no seu conjunto, através do registo da actividade humana no seu tempo e espaço. A cultura é o registo do que, ao longo do processo histórico através da linearidade da existência humana, nos aporta o humanismo à humanidade, é um direito de conquista própria, um direito terreno, uma necessidade vital, uma ferramenta para o desenvolvimento do indivíduo e do colectivo, dos povos e das suas nações.
Reconhecendo o dito é simples de acompanhar que a cultura e a sua expressão artística não têm, e não podem ter, um objectivo monetário, de lucro ou puramente comercial, que não é o mesmo que afirmar, nunca e de forma nenhuma, que aos seus trabalhadores e obreiros não lhes é devida a justa e digna retribuição salarial. A concepção é inclusivamente reconhecida por vários textos constitucionais progressistas, sublinhando as suas componentes de serviço e utilidade públicas, e a pressuposta necessidade de democratização quer no acesso à sua fruição como no acesso, em tempo, espaço e condições económicas, à sua criação, e é partindo desse princípio ideológico, constitucionalista e humanista, no campo da razão, da emoção e da justiça, à luz de tudo que nos torna iguais, que a cultura é parcial, política, justa, empática, humanista e revolucionária.
A cultura não é, como qualquer outro conceito de construção humana, imune à instrumentalização para efeitos e propósitos indevidos, ao enviesamento do seu fundamento, imune à tentativa de mercantilização e liberalização, mas tem, no entanto, uma unidade absolutamente monolítica no que toca à sua caracterização política e posicionamento último.
A cultura é militante, sim, é vanguarda do justo, do oprimido e do explorado, é consequente, é atenta e denunciadora, é baluarte da memória, da intervenção, da paz, da luta, da justiça, da igualdade, da liberdade. A cultura é a perpetuação dos povos, dos seus momentos, sentidos e vividos, tocados e chorados, da sua plenitude, pelo escorrer histórico do seu papel na modelação das sociedades, e dos seus homens e das suas mulheres, e dos seus exemplos sempre vivos, que não morrem que já não podem morrer mais.
Há espaço para todas as suas manifestações e amplas expressões, mas é a cultura e a sua expressão artística interveniente e consequente, e não os seus salpicos produzidos a metro e a cordel, que os povos guardam, material e imaterialmente, em tradição e memória ou em edificação e arquivo. Porque todas e quaisquer manifestações culturais e artísticas ora são levantadas por essas mãos, ou não sendo são essas mesmas mãos que servem de inspiração, que o garante disto tudo a que definimos como humanidade e que se pretende que se levante do chão, tarde ou cedo, tem como alavanca a cultura, a arte e o conhecimento, e, por fim, a sua materialização política.