Um Nuno Ferreira, que achou piada a descrever-se como “nascido no segundo mês dos anos 80 e gosta de gelatina de morango” decidiu partilhar com a humanidade uma crónica no P3 sobre, pensará ele, “cultura”. O Nuno Ferreira, de quem mais não sei além do que ele próprio connosco partilhou, ou é um habilidoso propagandista da direita ou é um idiota chapado, o que – bem sei – não é absoluta nem mutuamente exclusivo.
A “crónica” sobre “cultura”, se tiverem o cuidado de ler, redunda apenas numa “redacção” sobre “gosto”, o que são coisas diferentes na forma e no conteúdo.
Eu não sei o que faz o Nuno, mas estava capaz de lhe perguntar se aceitaria receber em função do número de pessoas que lêem a porcaria que escreve no P3. Ou se acha justo que um carpinteiro receba pelo número de pessoas que usam a cadeira que produziu; ou ainda se considera justo que um pedreiro receba em função do número de pessoas que vão usar a casa que construiu. Ou se um mineiro receba em função do número de pessoas que vão usar o ouro.
A forma como o Nuno nos distrai para um debate estupidificante sobre “gosto” para não falarmos de cultura, pode ser deliberada ou não. No primeiro caso, o Nuno é esperto, no segundo é só parvo. Se a conversa for deliberada, é gasta, mas ainda assim merece alguma resposta:
Nuno, as pessoas que exigem que o Estado cuide da produção, criação e fruição cultural, não têm como objectivo, em caso algum, determinar o estilo ou a escola estética das obras, como o mercado determina directa e indirectamente. O Nuno acha que o artista só deve produzir uma espécie de bem de consumo, como rebuçados, se forem saborosos vendem muito e o artista safa-se, se souberem mal, o artista morre de fome. Ora, o Nuno deve ter capacidade suficiente para compreender que, por todos os motivos, a arte e a cultura não são bens de consumo, nem mercadorias como as restantes.
Mais que não seja, porque o Nuno deveria ter a consciência de que os próprios bens culturais de mercado só podem existir se existir muita arte experimental: ou o Nuno acha que as sinfonias nasceram sem que muita gente escrevesse partituras sem acolhimento? O Nuno até é rapaz para saber que pintores como Van Gogh terão sido capazes de vender pouco mais do uma obra em vida, apesar de serem hoje tidos em conta até por quem hoje ouve Iron Maiden, ou lê Margarida Rebelo Pinto (já agora, não percebo por que raio o cronista os mete no mesmo saco).
No entanto, o Nuno hostiliza aqueles que clamam por uma resposta cultural do Estado, aqueles que acham que deve haver oferta cultural independentemente da selecção fnac ou da programação da tvcabo, caricaturando as posições desses como se de uma imposição ou julgamento de gosto fosse. Ou seja, Nuno tenta colocar os que lutam por uma política cultural com uma espécie de elite sobranceira que julga que Margarida Rebelo Pinto não presta e que só de prémios nobel da literatura se deve compor uma estante. Com essa manobra ganha um ponto sobre os que gostam de MRP e nunca leram um prémio Nobel da Literatura porque coloca a questão numa espécie de antagonismo do gosto popular e do gosto da elite. E com isso, distrai o leitor da questão central: a de que o gosto não pode determinar uma política cultural. Isso é o contrário do que faz o cronista que defende a política do gosto como imposição única.
O que o cronista não percebe, ou finge não perceber, é que a cultura que o mercado e as classes dominantes promovem não precisa de apoio do estado porque vive de publicidade colocada, da exploraçao do trabalho do artista e dos tecnicos, de entradas cobradas, de eventos comerciais e promoções de marcas ou apenas porque veiculam as mensagems que a classe dominante pretende veicular e está por isso disposta a pagar. Já a arte experimental, a vanguarda, ou mesmo algum repertório clássico ou contemporâneo mais arredado das páginas de jornais e dos cartazes dos festivais de verão, não sobreviverá sem o financiamento e apoio público.
Mesmo na óptica de um liberal, não haverá arte de massas sem arte experimental e nem telenovelas hoje se fariam hoje se o teatro não tivesse sido uma expressão tão importante no passado e seja mesmo no presente. Não haveria eventos privados a promover colecções do Prado no MNA se não houvesse uns loucos que pintavam apenas para as elites (por falta de opçao) dos séculos XVII e XVIII.
Gosto e política cultural deviam ser imiscíveis. Só com o fim da ditadura do mercado se porá fim à ditadura do gosto. Seja bom ou mau-gosto. Ainda por cima, no momento, temos a infelicidade de ter um mercado dominado por uma burguesia de extremo mau-gosto que impõe a mediocridade às massas enquanto guarda para si, como adorno social, alguns eventos de elite, de gosto menos questionável mas de preço muito mais restritivo.