A hipocrisia do Lacerda, resposta a uma carta

Nacional

Senhor Francisco Lacerda,

Recebi a sua missiva, sem data, há alguns dias atrás. Já antes tinha visto, e continuo a ver, os anúncios na televisão. O único adjectivo que me ocorre para classifica-la é hipócrita. Hipócrita a todos os títulos.

Lacerda, você começa por dizer “estamos cada vez mais presentes” e, não lhe bastando afirmar semelhante falsidade, ainda coloca a frase a negrito. Talvez o faça na vã tentativa de o negrito fazer esquecer as mais de 120 estações de correios encerradas nos últimos anos. Nenhum desses encerramentos foi recebido pelas populações afectadas com ânimo, bem pelo contrário. De norte a sul do país os testemunhos que nos foram dando as notícias eram os de gente apreensiva e preocupada – como receberiam agora as suas pensões? Como pagariam algumas contas? Como poderiam enviar uma carta ou uma encomenda?

Ouvimos vozes que, por detrás de gravatas e sorrisos de plástico, iam repetindo que esses serviços seriam assegurados através de acordos com o comércio local. E a reacção das pessoas não se fez esperar – quem garante a qualidade do serviço? Quem fiscaliza? Quem se responsabiliza? São os funcionários de papelarias, mercearias, padarias que entre dois quilos de fruta, quinhentos gramas de carne picada, um pão de Mafra, um corte de cabelo, uma caixa de pregos, duas canetas e uma borracha, pagam a pensão à D. Lurdes e recebem a electricidade do José? E o dever do sigilo, como fica? Lacerda, você talvez não saiba (já que pelo CDS-PP não há registo de quem tenha lutado contra a ditadura fascista de Salazar, lutado de Lutar com “L” grande, a sério, arriscando-se, enfrentando, questionando) que foram despedidos e até presos carteiros que, no seu zelo profissional, procuraram manter a inviolabilidade da correspondência, escondendo dos agentes da PIDE os envelopes que destinavam aos “suspeitos de actividades subversivas”. Claro que, em tempos em que quem denuncia a violação de comunicações é tomado como terrorista e a privacidade tornou-se numa espécie de artesanato comunicacional, esta é uma questão menor. Mas veja bem, não se trata apenas de confiança, trata-se de competência profissional: à padeira compete-lhe fazer um bom pão, não lhe cabe assegurar serviços postais.

Quanto a presença estamos conversados.

Depois Lacerda, você refere quatro razões para explicar que os CTT são uma empresa de sucesso. É um facto, os CTT são uma grande empresa, construída ao longo de cerca de 500 anos, com os meios e os esforços de todos os portugueses e, sobretudo, dos seus trabalhadores. É uma empresa que vale mais do que os 828 milhões de euros em que o Estado a avaliou e certamente bem mais que os 580 milhões que se prevê de “encaixe”. E não me refiro apenas ao que a empresa custou ao longo de anos e ao que ela significa para o povo português, refiro-me ao lucro que ela gera anualmente. Veja bem Lacerda, nos últimos 6 anos os CTT fizeram cerca de 400 milhões de euros. Isto significa que em 8 anos, mais coisa menos coisa, os 580 milhões despendidos, essencialmente por quem quer que venha a deter a maioria das acções da empresa, estarão completamente pagos e que o Estado perde uma grande fonte de rendimentos. Portanto Lacerda, para continuar a “escrever esta história de sucesso” o melhor contributo de cada um dos portugueses, é lutar contra a privatização da empresa.

Mas devo também dizer-lhe que esta conversa do “junte-se a nós na privatização” é uma tremenda falinha mansa que me causa urticária e palpitações cardíacas. A mim lembra-me bastante os discursos e prospectos publicados por alturas da privatização da EDP, por onde você, mais tarde, passou também como administrador, não é verdade Lacerda? Nessa altura dizia-se que todos íamos ganhar com a privatização da EDP, que ela só seria verdadeiramente pública quando os portugueses pudessem comprar as suas acções. O resultado está à vista: os únicos que ganharam foram aqueles que fizeram brutais fortunas à custa da apropriação de uma fatia substancial do sector energético do país, que antes era de todos, e à custa dos preços imorais que se cobram hoje por um serviço básico.

Curiosamente (ou não), a par dos titânicos lucros da EDP, o seu serviço degradou-se. Na Amadora, esse lugar do Portugal recôndito, a EDP não tem um serviço de tesouraria e quem quiser pagar uma conta tem de se dirigir à lavandaria do centro comercial. É o que acontece quando se privatiza um serviço público: a qualidade passa a ser secundária, o que rege o negócio é a obtenção do lucro.

Quero ainda partilhar consigo uma outra observação: com tanta conversa sobre livre iniciativa, empreendedorismo, livre concorrência, etc. e tal, no que se refere a serviços essenciais é sempre a propriedade pública a mais rentável e é sempre ela que os super-empreendedores, que pensam “out of the box” e que são modernos querem abocanhar? Porque é que não é a Chronopost ou a DHL ou a UPS o “líder nacional de encomendas e correio expresso”?

Poderia dizer muito mais Lacerda, mas a carta já vai longa e tenho de terminar.

Não vou, portanto, dirigir-me ao balcão do meu banco e dar ordem de compra de acção nenhuma. A História recente confirma o que Lénine já dizia há quase um século; “o «sistema de participação» não só serve para aumentar em proporções gigantescas o poderio dos monopolistas como, além disso, (…) roubar o público”.

Não vou, portanto, ajudar ao agigantamento de impérios financeiros, como o da família Mello, a quem você serviu dedicadamente durante anos como administrador dos seus bancos, ou de qualquer outro capitalista nacional ou estrangeiro.