Sá Carneiro morreu há 33 anos

Nacional

Nasci depois do dia 4 de Dezembro de 1980, o dia da morte de Francisco Sá Carneiro, fundador do PPD/PSD. Nasci em Viseu, terra fria do interior, ali bem no centro, entre o mar e a fronteira, bem no centro da direita, entre o PPD/PSD e o CDS-PP. Como todas as terras, Viseu tem as suas histórias, e hoje faço um flashback de 33 anos.

A informação não corria como hoje, sem a internet nem a TV presente em todos os lares, as notícias levavam o seu tempo a correr e, ao contrário do que hoje acontece, corriam peneiradas pelo filtro da sua relevância. Morrer um Primeiro-Ministro, seja ele quem for e seja ele de que campo político for, é obviamente uma notícia relevante, chocante e histórica. E teria sido atentado ou acidente? Até hoje não sabemos.

O país foi parando para ver as imagens que nessa noite mostrariam Camarate em polvorosa, iluminada pelos focos das câmaras e pelos pirilampos das ambulâncias e dos carros da polícia. O país foi parando a seu tempo, sem imaginar que um dia teríamos aparelhos capazes de nos parar a todos quase em simultâneo. No Cinema São Mateus, em Viseu – hoje uma farmácia, os cinemas da ZON Lusomundo não dão tréguas em lado nenhum – um casal de jovens apaixonados assistia a um dos filmes mais marcantes da minha vida, “Voando Sobre um Ninho de Cucos”. Obrigado, Jack! No intervalo, eles e os restantes espectadores, souberam da notícia da queda do avião.

A perturbação foi imediata, e na segunda parte, para além do casal, poucas foram as pessoas que permaneceram na sala. Quando somos adolescentes há poucas coisas mais importantes do que mãos dadas no escuro do cinema. O casal continuou junto por alguns anos, e pelo meio fez e teve um filho, um filho que viria a tornar-se num filho comunista: eu.

E isto de ser comunista tem os seus quês, e ser comunista em Viseu torna maiúsculos esses Quês. Nesse mesmo dia 4 de Dezembro, comemorava-se o aniversário de dois reconhecidos militantes comunistas da cidade. Um médico, daqueles que dava mais consultas a troco de ovos e vinho do que de dinheiro, e um jovem professor primário, que via o Ensino Público de qualidade a cimentar-se. Esse médico morreu há alguns anos, com a bandeira do seu Partido a cobrir-lhe o caixão, um acto destemido naquela terra, o jovem professor tornou-se dirigente sindical e uma das figuras viseenses que mais luta pelos da sua classe.

O médico comemorava o seu aniversário no recato do lar, o jovem professor fazia-o nas ruas da cidade – a presidência da câmara continuava a pertencer ao CDS. As palmas, os risos e a festa trouxeram-lhes dissabores. Ao médico cercaram-lhe a casa umas quantas pessoas, democratas por certo, ao jovem professor e aos amigos ameaçaram-nos com uma valente coça, mais democratas por certo. Motivo: eles eram comunistas, só podiam estar a comemorar a queda do avião e a morte Sá Carneiro e Amaro da Costa. Entre berros, vinhos e ameaças, um e outro lá conseguiram explicar que os aniversários não se deixam de comemorar porque outras pessoas morrem e os ânimos democráticos deixaram de ferver. Isso não deve ter contido os boatos, e de certeza que nos dias seguintes muitos viseenses, todos democratas por certo, lhes atiraram à cara os mais variados impropérios. Ser comunista em Viseu dói mesmo, principalmente quando está frio…

2013 marcou o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, importante militante e dirigente do PCP. O Partido de que fez parte e os seus militantes e apoiantes fizeram questão de deixar bem marcada esta efeméride. O dia de hoje poderia servir para que o PSD e os seus militantes e apoiantes lembrassem Sá Carneiro, mas talvez o pudor os impeça de o fazer.

Álvaro Cunhal facilmente se reveria no Partido que todos os dias se mobiliza em torno do marxismo-leninismo e das ideias, estratégias e propostas que muitos militantes e dirigentes foram construindo colectivamente desde a fundação do PCP. Sá Carneiro, se voltasse à vida, perceberia que no dia 4 de Dezembro de 1980 não foi apenas ele que morreu, também morreu a possibilidade de o PPD/PSD ser social-democrata.

Em Maio de 78, Sá Carneiro afirma: “Nós, Partido Social Democrata, não temos qualquer afinidade com as
forças de direita, nós não somos nem seremos nunca uma força de direita”. Será que um novo membro da JSD é posto em contacto com as palavras do fundador do seu partido? Será que Passos Coelho não cora de vergonha de cada vez que recorre à memória de Sá Carneiro para sustentar medidas do seu governo?

Os partidos não se querem imutáveis na sua organização, no seu funcionamento e nas suas tácticas, mas como disse Sá Carneiro, “um partido não é uma reunião de tendências, não é uma frente, não é um conjunto de
opiniões, é efectivamente uma comunidade unida por um programa claro”. O programa deste PPD/PSD é claro como água, não tem é uma única gota de social-democracia.

Em 2013, e por via da sua coerência e persistência, os comunistas – que até em Viseu continuam a comemorar os seus aniversários – recomeçam a ser apontados pelos tais democratas de 1980 como perigosos bombistas de fato de macaco, os jovens casais têm cada vez menos salas de cinema de qualidade para dar a mãos e a social-democracia transformou-se no espaço da corrupção e do roubo patrocinados pelo Estado e da manutenção de feudos económicos e financeiros nas mãos de um reduzido número de famílias que fazem da exploração o seu principal empreendimento. Em Viseu continua a pontificar uma estátua de corpo inteiro de Sá Carneiro. Pequenina, portanto.

Deixo um conselho amigo aos militantes radicais do PPD/PSD – radicais por se quererem manter fiéis à raíz da sua fundação -, expulsem os acéfalos liberais do vosso partido de forma permanente e resgatem a social-democracia, ou então saiam vocês, sejam coerentes, sejam livres!

Hoje passam 33 anos da morte de Francisco Sá Carneiro. Acredito que com o homem vivo estaríamos um pouco melhor, mas…do Álvaro dizem que era um proto-ditador, e o homem não fez outra coisa que não fosse combater a ditadura, de Sá Carneiro dizem que era um democrata, mas foi deputado da União Nacional durante a ditadura…e agora?

Talvez que a minha esperança seja uma inocência de quem deseja que isto melhore nem que seja só um bocadinho, talvez que com Sá Carneiro estivéssemos na mesmíssima situação em que estamos hoje, afinal Mário Soares ainda não morreu, e…bom, cá continuamos a voar sobre um ninho de cucos.

Autor Convidado *
André Albuquerque