“A História Do Papagaio Caio, Da D. Vicência Sampaio E Da Amiga A Dona Carlota Bexiga”

Nacional

A política de direita não precisava de mais um jornal ao seu serviço no panorama editorial nacional. Certo sector da direita sim, sentia-se sub-representado. O Observador surge nesse contexto, multiplicando por muitos um espaço de promoção de uma mundivisão ultra-reaccionária que tinha em meia-dúzia de articulistas dispersos, cruzados sem crédito num panorama geral de publicações mais contidas e encostadas a chavões meio-tinteiros, os seus mais diligentes representantes. Com o surgimento d’O Observador passaram a existir, em menos de nada, cinco ou seis novos Henriques Raposo, nove ou dez Joões César das Neves, três ou quatro Pulidos Valentes.

Gabriel Mithá Ribeiro, que se celebrizou no final de 2013 por ter afirmado, em entrevista específica sobre a sua visão da instrução pública, que se encontrava “fisicamente preparado para actuar se um aluno desobedecer“, é um dos rostos dos neocons portugueses. O texto que ontem assina no Observador é apenas mais uma peça desse processo de afirmação de humilde e martirizado “selfmade man” (perdoem-me o inglesismo) da saudosa e integralista direita mais à direita nacional. É ler aqui, que a coisa é pedagógica à sua maneira…

Mithá Ribeiro dedica dois terços do seu texto a notas biográfias suas, enfatizando os aspectos que nela contribuem para uma tentativa de auto-credibilização no que se refere ao tratamento do tema da pobreza. Mithá foi pobre e, nesse sentido, não precisa de especular sobre o significado de viver com pouco ou nada. A minha bisavó também costumava dizer-me que não precisava de imaginar o que é ter fome já que fome foi coisa pela qual passou. A diferença é que a minha bisavó nunca usou essa circunstância da sua vida para recusar aos outros – sobretudo a quem nunca passou pelo mesmo – o direito de exprimirem opinião sobre o assunto e de, sobretudo, agirem de acordo com as suas convicções no mesmo contexto. Bem pelo contrário…

Mithá pensa diferente (é óbvio), mas na verdade pouco escreve sobre o que pensa. Para lá das já referidas notas biográficas, Mithá escreve aquilo que qualquer ex-conde da Quinta da Marinha é capaz de dizer entre dentadas num scone e beijinhos na chávena do chá das cinco: “estado social” talvez, mas sem criar “dependências parasitárias“. O argumento colheu junto de uma população em rápido empobrecimento que, em determinado momento, julgou ver naqueles que viviam e vivem com ainda menos as causas da sua desgraça. Pobres policiando pobres, enquanto os ricos engordam. Tem sido assim desde que as comunidades humanas se diferenciaram em classes sociais.

O que nem Mithá diz, nem as donas Vicências Sampaio desta vida dizem, é a quem se referem. Porque “toda a gente sabe” que existem “abusos“, mas ninguém é capaz de apontar casos concretos de “abuso” suficientes para suportar a ideia de que existem “dependências parasitárias” para lá de meia-dúzia de aldrabões que qualquer mecanismo de fiscalização minimamente eficaz seria capaz de detectar sem grande dificuldade. Até porque, como é sabido e verificável através de dados objectivos disponibilizados pelas entidades oficiais da área da Segurança Social, a maior parte dos beneficiários de apoios sociais não são calões com idade para trabalhar, mas antes crianças, idosos e trabalhadores com rendimentos do trabalho insuficientes para garantir uma vida digna às suas famílias. Contra isto, batatas.

O texto também não identifica uma única causa da pobreza estrutural de um sistema/regime que nunca foi tão pujante no que se refere à criação de riqueza, logo a distribuindo de acordo com a tradição: nove para mim, um para ti (e já gozas). Debater as causas da pobreza seria certamente para Mithá entrar no campo da “retórica política” que tanto parece desprezar (mas que é o molde óbvio do seu próprio discurso sobre o assunto). De resto a crónica “Pobreza? Tenham decência, nem sabem do que estão a falar” não tem qualquer objectivo que ultrapasse a acusação e a tentativa de menorização da discussão pública sobre um problema que é das pessoas afectadas e é do país como um todo. Fica-se com a sensação de que Gabriel Mithá Ribeiro está “fisicamente preparado para actuar” também neste contexto. Medo.

E é assim que, chegados ao fim do texto, a razão para a enfadonha e despropositada xaropada biográfica se torna clara: Mithá usa a credibilidade que procurou construir nos anteriores parágrafos – através da explicitação da sua condição de ex-pobre – para, apontando vinte e sete nomes (refere aliás que a lista poderia ser “interminável”), questionar o “valor” dos discursos sobre a pobreza daqueles que, “eivados de uma pretensa superioridade moral”, não fazem o silêncio respeitoso que o professor reivindica relativamente a esta matéria. O paradoxo é óbvio: o articulista critícia alegada “pretensa superioridade moral” fazendo uso de um pouco elaborado esquema de elevação moral relativamente aos visados.

Ao contrário de Mithá Ribeiro não tenho um conhecimento profundo da biografia pessoal de cada um dos vinte e sete visados, nem tão pouco da “interminável” lista de “farsantes” a que o autor se refere. Não tenha sequer simpatia por mais de dois terços das pessoas apontadas. Também não sei se algum dos vinte e sete foi durante a sua infância tão pobre como Mithá (mas o autor deve saber, naturalmente), nem creio que esse aspecto seja relevante para o debate sobre a pobreza, as suas causas e as soluções que desde há muito o problema – que não é circunstâncial mas antes estrutural do sistema/regime em que vivemos – exige. Divagações em torno de circunstâncias da biografia pessoal para impôr aos outros um silêncio nauseabundo e cúmplice face à destruição em série de vidas de pessoas e de famílias são, mais do que uma fuga para a frente, mais do que qualquer “zénito do nojo“, uma estratégia de perpetuação da pobreza como um género de percurso de redenção e crescimento que sempre foi muito caro à extrema-direita assumida, ou àquela escondida com rabo de fora.

A verdade é que não me calo. Não nos calamos. Pobres, ex-pobres, gente que vivendo com pouco nunca passou privações materiais severas. Não nos calamos. O tema é demasiadamente importante para ser votado ao silêncio cúmplice daqueles a quem tanto jeito dão os pobres como mercado da caridade particular e circunstancial, ou institucionalizada e industrializada. Não nos calamos. Até porque se dependermos das ideias dos Mithás deste mundo para decepar de uma vez por todas a natureza estrutural e profundamente desigual do sistema estamos bem tramados. O artigo é disso mesmo bom exemplo: um deserto absoluto de ideias concretas, para lá de julgamentos apressados e tiradas moralistas (“Se me sinto afortunado foi porque cheguei a Portugal numa altura em que ninguém me estendeu a muleta do coitadinho, ninguém me viciou na ideologia dos subsídios“) que encostam o autor à mesmíssima postura que tanta irritação lhe causa nos outros.

A história avançará e Mithá ficará lá atrás, conservador da lata que despreza a sardinha. Conservador das clássicas formas de estruturação social, caducas e sem futuro, que serão derrubadas quando chegar o tempo de cairem, demore o tempo que demorar. Não de podres, embora podres estejam. Não por acção ou discurso isolado de algum dos vinte e sete visados (boa parte dos quais querem que pouco mude para que no essencial tudo fique na mesma). Mas por acção dos humildes, dos trabalhadores, daqueles que todos os dias empobrecem trabalhando.