A luta dos bolseiros e da comunidade científica

Nacional

O Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) em Portugal sempre foi deficitário. Durante os últimos governos do PS registaram-se alguns progressos, por exemplo em termos de número de doutorados e investigadores, e financiamento de projectos, embora este tenha ficado aquém das necessidades de evolução do sistema. Tão pouco houve melhoria no rácio de técnicos por investigador, na investigação e desenvolvimento (I&D) realizado nas empresas e sua integração de doutorados, ou no plano mais geral do emprego científico. Durante o Ministro Mariano Gago, que só merece marca positiva por comparação com Nuno Crato, deu-se continuidade também à desmantelamento dos Laboratórios de Estado, que têm uma importante função no SCTN de apoio à actividade económica e monitorização, entre outros.

As tendências positivas magras que se vinham verificando foram porém invertidas sob Nuno Crato, incluindo cortes no financiamentos de projectos e das unidades de investigação, novos ataques aos Laboratórios de Estado, e um processo de reestruturação das unidades de investigação que irá por fim aos Laboratórios Associados. A política deste governo para o SCTN, como noutras áreas, é o de cortes, decididos sem plano concreto para o SCTN. A palavra “excelência” não constitui um plano, nem grupos de excelência podem existir num deserto, nem uma economia moderna pode ser contemplada sem o apoio de um SCTN robusto. É uma política de assalto e destruição, sem atender à necessidade de garantir o papel importante da investigação como criador de conhecimento e fomento de desenvolvimento, de qualificação e formação de quadros superiores. É uma política virada para um Portugal subdesenvolvido, colonizado, sem autonomia, com uma economia assente nos serviços e produção de baixo teor tecnológico e em baixos salários.

Este processo de destruição do SCTN não se limita ao Ministério da Educação e Ciência. É disso exemplo o lamentável processo em curso de desmantelamento do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, a cargo do Ministério dos Negócios Estrangeiros devido ao seu papel na cooperação, em particular com os PALOPs. O desaparecimento deste instituto, com história notória e realizando investigação de qualidade, reconhecida pela própria FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), vai deixar portas abertas para que as relações de cooperação científica e na área da saúde com países como Angola, Moçambique ou Cabo Verde fique a cargo de institutos análogos de países neo-coloniais como a França e Inglaterra.

O crescimento de pessoal na ciência em Portugal deveu-se muito à conta da precariedade dos jovens trabalhadores científicos, os bolseiros. A figura da bolsa de formação poderá justificar-se como forma de financiamento de… formação, durante um período transitório. As bolsas porém têm sido usadas abusivamente para financiar trabalho de carácter permanente, cobrindo falhas de financiamento das universidades, e unidades e institutos de investigação. Os bolseiros tornaram-se o sustentáculo do SCTN. Não só da investigação pura e aplicada, mas mesmo dos serviços prestados por este sistema. A título de exemplo, foram os bolseiros que garantiram o enorme volume de análises durante a “crise” da Gripe A, no Instituto Ricardo Jorge. São bolseiros que garantem o funcionamento de equipamento altamente especializado no Instituto Tecnológico e Nuclear, entre outros. (O ITN é outro instituto que foi extinto enquanto entidade autónoma, passando a ser integrado no Instituto Superior Técnico.) O carácter temporário e imprevisível das bolsas constituiu não só fonte de precariedade para o bolseiro, mas também para as instituições, que não podem assim garantir, em continuidade, quadros formados e experientes. Os bolseiros têm também crescentemente colmatado necessidades de docência das universidades, muitas vezes sem receberem remuneração por esse trabalho. A sua importância a este nível é tal que em Agosto de 2012, à beira do início do ano lectivo e já depois da elaboração das distribuições de serviço docente, quando o governo publicou uma alteração do Estatuto do Bolseiro que impedia os bolseiros de leccionarem cadeiras de licenciatura, as universidades protestaram em massa, obrigando o Governo a reverter essa medida.

O enorme corte de financiamento de bolsas no concurso de 2012, cujos resultados foram conhecidos a semana passada, gerou a resposta exigida da comunidade científica. Os bolseiros e candidatos a bolsas saíram à rua em número sem precedentes (superior a um milhar), acompanhados de outros membros da comunidade científica. Inúmeros editoriais têm aparecido nos jornais condenando os cortes, muitos de comentadores regulares na comunicação social que têm ligação às universidade e portanto conhecem a importância dos bolseiros. Este clamor silenciou comentários do Ministro Pires de Lima, e outros, que apenas revelaram uma enorme ignorância sobre o SCTN. O referido Pires de Lima desvalorizou o corte nas bolsas, dizendo que a investigação se deveria situar mais nas empresas. Até terá razão que deveria haver mais I&D nas empresas, mas a realidade é que estas não têm condições para a fomentar no actual contexto, nem o governo tem quaisquer medidas para o estimular.

A Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) teve um papel central, centralizando informação, mobilizando os bolseiros e a comunidade científica, e apontando direcções de luta, levando-a não só às portas da FCT como à residência oficial do primeiro-ministro, responsabilizando assim também o governo. Os manifestantes entendem de forma crescente que os cortes na ciência fazem parte de uma política mais alargada de austeridade, e reclamaram a demissão do presidente da FCT, do Crato e do Governo. (Lamento apenas a palavra de ordem que referia “incompetência”; como venho defendendo este governo e ministro não são incompetentes, são competentes na perseguição dos seus objectivos, cortes; esses objectivos são é totalmente desajustados e desprezáveis.) A ABIC e os bolseiros irão continuar a sua luta, apontando o “dia 29 de Janeiro – dia da discussão, na Assembleia da República, do abaixo assinado recolhido pela ABIC, que contou com mais de cinco mil subscritores”, e a participação na jornada de luta da CGTP no dia 1 de Fevereiro.

Este concurso de bolsas, à semelhança do anterior concurso para Investigadores FCT, foi pautado por irregularidades preocupantes. Já vários membros de júris vieram a público protestar contra os parâmetros da avaliação, e a alterações administrativas da suas decisões. O ministro Crato respondeu tratarem-se apenas de correcções aritméticas. As queixas não se resumem as estas alterações. Mas mesmo que assim fosse, a reacção de Crato apenas revela o seu desprezo pelo serviço prestados pelos membros do júri, que são miseravelmente compensados por trabalho ainda considerável, ao desconsiderar um valor fundamental na ciência: a comunicação. Se eram necessárias correcções às seriações dos júris, estes mereciam ser informados previamente e ter o seu trabalho tratado com respeito.

Sendo justa as reclamações contras os cortes no financiamento de bolsas, é necessário ter presente que o caminho para um melhor SCTN não passa por mais bolsas, mas sim por mais emprego científico. Os bolseiros há muito levantam esta bandeira, mas os restantes membros da comunidade científica necessitam de ser recrutados para esta frente. A reacção dos comentadores-professores é natural e justificada, mas assenta em parte na perspectiva que não poderão garantir o seu trabalho sem bolseiros. Os professores têm sido, regra geral, coniventes com o sistema de bolseiros. Espero que a situação gritante que temos hoje os leve a entender que um SCTN assente numa população tão vasta de bolseiros comporta níveis de imprevisibilidade e sustentabilidade que impedem a existência de um SCTN de qualidade.

Esta situação exige uma alteração urgentemente, sob risco de se suspender muita da actividade científica e técnica, e atirar quadros formados (à custa do investimento pessoal e público) para o desemprego, subemprego ou para a crescente população de emigrados. A mobilidade na ciência é positiva, mas deve ser uma opção de progresso na carreira, não uma necessidade. A não fixação de quadros formados em Portugal compromete as opções de desenvolvimento do país, com efeitos que se irão repercutir durante largos anos.

* Autor Convidado
André Levy