A marrar contra as paredes

Nacional

Desenho retirado da reportagem gráfica do blogue,Carbono e Outros

“Aleksei: “É o fim da propriedade privada: vai ser maravilhoso!” Pobres de nós, os bandalhos de terceira! Já que estamos privados do único bem terrestre – a propriedade –, então dá jeito cantarem-nos essas cantigas. Mas mesmo em sonhos continuamos aferrados ao que é nosso: “a minha trouxa, as minhas peúgas, a minha Maria”! O “meu”, que lá nisso nós somos iguaizinhos aos animais. Estás a ver, vocês andam a fazer propaganda a animais! Querer mudar os homens é como marrar contra uma parede: estão à espera de enganar quem?

Comissária: Achas que contra o “eu” e contra o “meu” não há nada a fazer?

Aleksei: O bem-estar egoísta, a propriedade privada, o salário, o pilim, o bónus, o lucro! Desde que o Homem é Homem que esbarramos contra esse muro! Por todo o país hão-de ser sete cães a um osso! Matilhas de proprietários engalfinhados a espumarem por um frango raquítico. Trazemos este fado dentro de nós.

(Cala-se de repente, como se tivesse sido arrancado a uma visão.)

Comissária: Muito bem, a Humanidade é ainda imperfeita – e é melhor assim. Só quer uma coisa: ter um pouco menos de fome. Basta uma galinha para virar os homens uns contra os outros. Fecham-se em casa, barricados com a sua galinhita bem segura… E não vêem as manadas de vacas gordas que lhes passam mesmo diante do nariz. E tu vês isso tudo e não queres saber. Deixas andar e ainda te gabas. É preciso gritar aos ouvidos de cada um: “Estás a ficar sem a tua parte! Estás a ser roubado!”. E se mesmo assim ele ainda não entende, então é preciso agarrá-lo pelo toutiço, a esse piolhoso, levantar-lhe a cara da lama e dizer-lhe: “Queres viver e comer melhor? Queres lavar-te pela primeira vez? Queres desenvolver os miolos? Queres amar?… Então levanta a cabeça, porra! Enfrenta o inimigo, olhos nos olhos, até à morte, se for preciso. Entra no combate – e respira! Percorre a Terra: ela pertence-te! Abandona a noite em que te fecharam e grita, a plenos pulmões: “Viva o sol, e viva a vida digna que eu, enquanto Homem, posso ter!”.

(Silêncio)”

Excerto do texto de “A Tragédia Optimista”, de Vsevolod Vichnievski, tradução de António Pescada. Em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, até ao próximo dia 31 de Janeiro.

Nota: ontem, domingo, dia de eleições, a parede do Teatro tinha sido pixada. Alguém escreveu, “Podem limpar a História mas não podem apagar a nossa memória. Viva a Anarquia!”
Acho que é a primeira vez que participo num espectáculo em que alguém se deu ao trabalho de mostrar publicamente que o nosso trabalho o fez pensar e reagir.
Como actor, sinto que não pode haver maior felicidade e até finalidade no nosso trabalho do que esta.

* Autor Convidado
André Albuquerque