Pelo título do artigo de São José de Almeida, “Uma herança de Cunhal“, eu esperava o último foguete do fogo-de-artifício anti-comunista. O centenário do histórico comunista deu ensejo a muito parolo para deixar a caneta destilar peregrinas teorias da conspiração, ódios antigos e outros recalcamentos políticos de traço patológico.
Mas não, São José Almeida não é papagaio de circo nem vaquinha de presépio. Não nos vem dizer que o PCP está a adorar às escondidas estátuas de Cunhal nem que o ex-dirigente denunciou à PIDE o senhor que lhe veio montar o ar condicionado aquando da sua estadia balnear na Roménia. Antes fosse, porque de todas as que já ouvi por ocasião do centenário, a serôdia acusação de SJA contra Cunhal leva a camisola amarela da parvoíce.
Estão prontos? Então cá vai:
Explica-nos São José de Almeida que a recente tentativa de unir sob uma só batuta europeísta o Livre, o 3D e o BE falhou por culpa de Álvaro Cunhal. Sim, leram bem. Segundo a jornalista do Público, desde a década de quarenta que toda a esquerda portuguesa é refém da quinquilharia programática que Cunhal desenhou para o PCP. Mas no fundo, no fundo, o que SJA nos está a querer dizer é que Álvaro Cunhal expulsou a Ana Drago da Comissão Política do BE. É isso mesmo, tinha que sobrar para o PCP.
É mesmo uma pena que SJA não goste de vanguardas, porque a ideia de o Bloco de Esquerda e o PS estarem reféns do pensamento de Álvaro Cunhal é no mínimo… vanguardista. Mas para SJA já não há vanguardas, nem massas nem tampouco classes: somos apenas eleitores, consumidores, utentes… Intuo que São José de Almeida não se mova no mesmo espaço físico que eu. Algo me diz SJA não apanha o comboio nos subúrbios de Lisboa com milhares de outros trabalhadores que vão cumprir as suas oito horas. Suspeito que SJA nunca passou muito tempo nas fábricas têxteis do Rio Ave nem na fila dos centros de emprego do Porto.
Não, SJA não acredita na existência massas porque ela própria vive pairando sob as cidades dos homens numa bolha de sabão: SJA não trabalha, não é explorada, não empobrece nem tem os mesmos interesses que o comum dos portugueses, até porque para SJA, tal conceito de “português comum” seria ofensivo: não se pode afogar em massas anónimas e classes económicas a individualidade insubstituível que faz de cada um de nós utentes e consumidores únicos. Não é verdade, SJA?
E eis que tropeçamos num parágrafo que depois disto tudo me deixa muito confuso. Escreve SJA:
Hoje em dia parece difícil, senão mesmo impossível, haver quem pense que existem massas para conduzir. E a ideia de vanguarda política surge desfasada na era da comunicação de massas
Sim! Como é que ainda há quem acredite existirem massas na era da comunicação de massas?!OK, eu compreendo que São José de Almeida não esteja muito familiarizada com o conceito leninista de partido de vanguarda, mas negar a ontologicamente existência de vanguardas é negar que haja lideranças, pensadores e decisores. Também compreendo que SJA queira ser muito pós-moderna, mas se não existem vanguardas a conduzir os movimentos das rodas da história, então serão as “massas anónimas” a fazê-lo espontaneamente. E não já tínhamos estabelecido que não existem massas?
SJA não pode compreender que não é vanguarda quem o diz ser. É vanguarda quem a História decide que o seja. E se há organização que, quase há um século e cada dia e em cada rua faz jus ao título de vanguarda da classe operária e de todos os trabalhadores, essa organização é o PCP. As outras, do BE, ao Livre, passando pelo MAS até ao 3D, que se organizem a si mesmas como melhor lhes aprouver, mas não culpem Álvaro Cunhal: o PCP nunca disse ser vanguarda dessa esquerda toda.