Quando em 2012 se deu o grave incidente na fronteira entre a Síria e a Turquia, que consistiu no abate de um avião militar turco de reconhecimento que sobrevoava o seu território, as autoridades turcas não hesitaram em activar os mecanismos previstos no artigo 4º do Tratado do Atlântico Norte. Na mesma circunstância afirmaram ser sua intenção activar o artigo 5º do mesmo Tratado, que prevê que um ataque a um dos estados membros da NATO seja considerado um ataque à própria aliança. O tempo era de provocações sucessivas à Síria, com violações grosseiras da sua soberania, promoção mediática, política, militar e diplomática dos grupos armados da chamada “oposição”, utilização do território turco como porto-seguro para a entrada e saída de jihadistas dos campos de batalha e até operações de falsa bandeira que em devido tempo foram denunciadas.
Três anos volvidos é a própria Turquia que se envolve num incidente militar que vem testar a coerência da NATO e dos seus estados membros: alegando violação do seu espaço aéreo, um caça turco abateu um avião militar russo na zona da fronteira com a Síria, provocando a morte de um dos membros da tripulação às mãos dos “rebeldes moderados”. Neste contexto julgo ser legítima a pergunta: o ataque de um dos estados membros da NATO a um país não-membro da Aliança vincula todos os outros às possíveis consequência do acto de guerra em questão?
O cenário é tenso e complexo, com vários dos protagonistas envolvidos em operações militares na Síria a desempenharem um papel duplo e extremamente perigoso cujas consequências ainda ignoram.
A NATO continua empenhada em armar grupos de “rebeldes moderados” cujo perfil é incapaz de definir; os “rebeldes moderados” treinados pela CIA e os equipamentos militares disponibilizados ao “Exército Livre da Síria” e aos Peshmergas curdos (não confundir com as forças de defesa popular que actuam no quadro do PKK e dos seus grupos de guerrilha) acabam invariavelmente ao serviço de grupos salafistas associados à rede Al-Qaeda e ao próprio Daesh, como refere o jornalista alemão Jürgen Todenhöfer, um dos especialistas sobre a matéria: “Chaos in the whole Middle East, and we are surprised that in this chaos we now chaotic people, terrorists, like IS. So, I give you another example: the U.S. are supporting the FSA, these are rebels financed by Western countries. But these FSA fighters sell their ammunition to IS. The IS fighters told me: “we need them! We get almost all our ammunition from the FSA, and we also get weapons from FSA, and we get weapons from Kurds, and we hope that you will send a lot of weapons to the Kurds because we can, in the end, buy them on the market.” I saw German machineguns, I saw them myself. It’s a complete mess.” [fonte]
As ditaduras reaccionárias do Golfo, que no Verão assinaram contratos de dezenas de biliões de dólares com o Pentágono continuam a suportar financeiramente os mesmos grupos que aparentemente combatem no seio da “coligação” norte-americana e a Turquia, que assistiu impávida e serena à tentativa de limpeza étnica dos cursos de Kobane, é o destino de boa parte do petróleo que, extraído em zonas controladas pelo “Estado Islâmico” na Síria e no Iraque, entra a preços irrecusáveis no mercado negro das matérias primas.
De resto chega-nos da Síria a notícia da destruição de um helicóptero russo (que se encontrava envolvido na operação de resgate dos pilotos do avião abatido) por parte de “rebeldes moderados”. A primeira questão que se coloca é a de saber como é que mísseis norte-americanos de milhões de dólares chegam às mãos de um exército “livre” constituído por “empregados de escritório, estudantes, médicos e comerciantes”. A resposta é dada pela própria imprensa norte-americana, que confirma a entrega de armas os grupos armados jihadistas, os tais que vendem ou perdem armamento a favor do Daesh: “The U.S.-made BGM-71 TOW missiles were delivered under a two-year-old covert program coordinated between the United States and its allies to help vetted Free Syrian Army groups in their fight against President Bashar al-Assad. Now that Russia has entered the war in support of Assad, they are taking on a greater significance than was originally intended.” [fonte]
A exportação norte-americana de armas anti-aéreas tem sido particularmente activa nos últimos meses, com o Qatar e os Estados Unidos a assinarem em Julho passado um contrato de valor superior a 11 biliões de dólares para o fornecimento de armamento cujo destino final verdadeiramente se desconhece: “The United States signed an agreement with Qatar on Monday to sell the Gulf Arab ally Apache attack helicopters and Patriot and Javelin air-defense systems valued at $11 billion.” [fonte]
Posto isto é forçoso colocar a questão: de que lado estão os países da NATO neste conflito? A quem servem as toneladas de armas, dólares e euros que despejaram em cima do conflito sírio? Que capacidade operacional teria o Daesh sem as compras de petróleo e algodão no mercado negro por parte dos turcos? Quanto tempo durariam os “rebeldes moderados” confederados em torno de grupos jihadistas como a Frente Al-Nusra sem o financiamento do Qatar e da Arábia Saudita?