Abril é muito mais que liberdade

Nacional

Todos os anos, em Abril, aqueles que com as suas mãos escrevem e assinam despachos, Decretos-Lei, Projectos-lei, ordens de serviço, portarias, artigos de opinião e memorandos repletos de insultos aos trabalhadores, aos reformados e pensionistas, aos estudantes e, em geral, ao povo português, enchem a boca com a palavra liberdade como se fossem pipocas a estalar e lá fazem a festa da mistificação, da deturpação e das omissões sobre o fascismo, sobre a revolução e sobre a contra-revolução. Os organizadores da gala deste ano superaram-se, só lhes faltou mesmo converter o fascismo em sinónimo de tempo em que a televisão era a preto e branco. A acreditar nesta gente, uma das grandes conquistas do 25 de Abril foi o consumo de coca-cola e até dá ideia que na origem golpe militar está a vontade de os namorados andarem livremente de mão dada. Liberdade sexual q.b., liberdade de expressão q.b. e sufrágio universal: é isto que dizem que celebramos anualmente.

A coisa chegou ao ponto em que tive de reler o programa do MFA, a carta constitucional que vigorou, ou que deveria ter vigorado, até à aprovação da Constituição. Respirei fundo. Já temia que tivesse imaginado, mas não. Lá estava:

“6 – O Governo Provisório lançará os fundamentos de:
a) Uma nova política económica, posta ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista;
b) Uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade da vida de todos os Portugueses.”

Pois. A revolução de 25 de Abril, tal como o Miguel Tiago aqui já expôs, não é a celebração do que temos hoje. Essa é a celebração do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro, a celebração de Vasco Lourenço, de Eanes, de Mário Soares, de todos os que tiveram o vergonhoso papel de destruir o processo, como dizia a proclamação do 25 de Abril, de restituição ao povo “dos seus legítimos e legais poderes” e a celebração daqueles que com isto, particularmente, beneficiaram.

Embora a verdade histórica tenha sido já demonstrada até à exaustão, persiste-se na tese de que o 25 de Novembro é um aprofundamento dos princípios do 25 de Abril e que os comunistas é que foram impedidos de levar adiante um golpe que pretendia instituir um regime totalitário. Há até quem queira colocar esta data no calendário das comemorações oficiais da república. Os mais desavisados ainda pensarão que os portugueses voltaram em massa a sair à rua em Novembro, com a flor da época, para comemorar o falhanço dos tenebrosos comunistas. Esta mentira propagou-se sem necessitar de prova e negando todas as evidências. Para sustentar o absurdo bastou diabolizar o compromisso dos comunistas para com a própria revolução.

A verdade não consegue levantar a voz, e apesar da dita liberdade de expressão, não há igualdade no acesso aos meios. A verdade fica abafada pelos altifalantes da mentira. É a prova de que não há liberdades sem garantias.

Sempre que oiço essas bocas empipocadas falarem da liberdade e do 25 de Abril lembro-me da canção do Sérgio Godinho,

“Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
a habitação
a saúde, a educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir”

A liberdade é a de respirar fundo e saber que dormiremos descansados debaixo de um tecto garantido, é a de poder saciar a fome, a de ter futuro, a de saber que se me doer um dente poderei trata-lo, é a de, no final do mês ter o suficiente para viver e disfrutar da vida, é a de decidir colectivamente o que a todos diz respeito. E é também a de falar. Mas a de falar também no meu local de trabalho e de poder reclamar melhores condições sem ser despedida, a de poder criticar o patrão sem medo, e de poder fazer greve sem retaliações.

A liberdade de Abril não é apenas liberdade. É dignidade, é igualdade, é solidariedade. É um conjunto de valores cujas definições se intricam umas nas outras e não se podem desembaraçar. Mas Abril não é apenas um conjunto de valores. É a sua humanização convertida em direitos. E também não são apenas direitos declarados. É a criação de meios que os garantam. E é também o poder para os manter e aprofundar.

Nos anos de 1974 e 75 quem temia o poder popular mascarava o seu receio com a tese de que “o poder não pode cair na rua”, como se o poder fosse uma jarra de cristal que corria o risco de se estatelar ou de ser levado por um qualquer ladrão de poder no meio da rua. O golpe do 25 de Novembro não conseguiu alcançar todos os seus objectivos, como também já o confirmaram os seus promotores. O PCP não foi ilegalizado nem a Assembleia Constituinte foi dissolvida e os seus trabalhos anulados. A Constituição foi aprovada, entrou em vigor e institui que o poder político pertence ao povo. Há quem faça de tudo para que isto seja esquecido e nunca cumprido, são os que fizeram e celebram Novembro.