Dos fracos não reza a história

Nacional

O autocarro cheira a bafo de sanduíches fermentadas toda a tarde em papel de prata. Tupperwares desabrocham para o jantar em arrotos de chouriço. José, que vai mesmo à nossa frente, está inquieto. Em vão, ajeita-se no assento, procurando um suporte mais confortável para a bola de carnes cozidas da sua formidável barriga. Rebusca um saco do Pingo Doce – Pois… – esqueceu-se mesmo da comida. – Merda para isto… – descarrega baixinho. Velozes, os olhos de Rita, aquela miúda do outro lado do corredor, despejam-lhe em cima um balde de condescendência e viram-se outra vez para a janela. Lá fora, repete-se com admirável precisão a paisagem desolada do Baixo Alentejo, uma crosta de pó improdutivo, tão ampla que parece adivinhar no horizonte a própria curvatura do planeta.

O saco restolha de novo, José desenrola-se e, pela fresta entre os assentos, lemos o título garrafal «MÃE COM UM DIFÍCIL DILEMA» José sacode o jornal e distinguimos o subtítulo da parangona: «Deixar o filho no carro em chamas ou enfrentar cães selvagens?». É o Correio da Manhã. Mas José está noutra notícia. – Bandidos! – dispara irritado – Nem os velhos escapam… – endireita na calva o boné marca de gelado e soletra solenemente – Filhos da puta! – Rita lança-lhe novo olhar, agora servido com um sorriso obviamente amarelo.

Atrapalhado, José explica-se: – Diziam que o corte era provisório, e agora, toma! É provisório é… provisório até ao crematório! – e ri com bonomia, sem compreender o desconforto explícito no acenozinho de Rita – Volta Salazar! Estás perdoado! – Rita, que deve estar na casa dos seus trinta e poucos, assente com um vago meneio e põe um fone no ouvido. Rita não gosta de política, o que é que tem?

– Tem razão… – murmura para o velho. Mas a passageira à sua frente, do lado do corredor, acaba de se voltar para trás:
– Não está perdoado não senhor! – é Sandra que fala, uma mulher da idade de José, trigueira e pequenina, com um brilho eléctrico nos olhos. – Olhe que antes do 25 de Abril passei muita fome a guardar os porcos dos ricos. De sol a sol!
– Olhe, ao menos havia trabalho! – Cospe José, procurando futilmente a confirmação de Rita, que achando-se dispensada das atenções do desconhecido, pôs o fone que faltava e carregou no play. No écran do i-phone lê-se: «Anselmo Ralph – Não me toca». Rita tem mais em que pensar, quer lá saber da política… Doem-lhe os pés, maleita terrível quando se é caixa numa loja de roupa. Como nos explicaria Rita, longe vão os anos em que os empregados subalternos se sentavam. «Suponho que seja uma questão de imagem». Dir-nos-ia. Num mundo tão competitivo, as grandes marcas têm uma imagem a preservar e isso passa por submeter os caixas a oito horas de tortura da estátua… apenas para satisfação do rigoroso cliente, é claro. Mas Rita não se queixa. Há muitos anos que deixou de se queixar. E não por ter deixado de sentir (que lá isso sente, como escamas de vidro nas plantas dos pés); não por não lhe atormentar a espinha, moída e mordiscada do peso da própria vida. Apenas por simples e incomplexo cansaço. “Poupa-se onde se pode” diz amiúde. Mas pouco se pode, ou quase nada. Vejamos pois, da cómoda bancada lateral que a ficção nos oferece, como agora poupa os pés (doridos, que é sexta-feira): Apenas assenta no chão do autocarro a ponta dos calcanhares, como os ilusionistas quando levitam em biquinhos dos pés. Rita ganha 750€ por mês, paga 68 de IRS, 83 de segurança social, 300 de renda de casa, 200 em comida e 50 no passe. Só paga a internet, a luz, a água, a eléctricidade e o gás com a ajuda dos pais. Todo o seu trabalho só lhe permite sobreviver. E Rita sabe bem que isso faz dela uma escrava. Por isso tem mais em que pensar do que em política.

– Ó senhor! Havia trabalho? – indigna-se Sandra. – Havia era medo, miséria, analfabetismo, guerra, doenças, emigração…
– E agora? Não há? – rosna José – Só falta mesmo a guerra! Antigamente éramos pobres mas havia respeito! – proclama, levantando o dedinho indicador – Olhe, eu nunca tive medo de andar na rua à noite! Isto agora é uma balbúrdia! Já não há decência, não há nada! Cada um faz o que quer e… – José preparava-se para se lançar numa longa peroração, que ensaia todos os dias no café de que é dono, sobre os méritos da autoridade, do respeito e da família, mas Sandra interrompeu-o a tempo:
– Oiça cá uma coisa – e da boca operária nasce esta pergunta clara – É verdade ou é mentira que antes do 25 de Abril contava-se pelos dedos quem tinha reforma ou pensão?
– Sim, sim… mas…
– Pois é verdade! Ainda me lembro, era eu gaiata, de andarem bandos de velhos a pedir esmola de aldeia em aldeia! E diga-me, já agora, outra coisa: é ou não verdade que não havia salário mínimo? Calma… diga-me lá se é verdade ou não? É verdade? Pois bem! E é ou não verdade que a educação era só para os ricos? E que não havia direito à saúde? E também não é verdade que se mandavam os jovens para a morte nas colónias? Ai combateu? Pois, foi uma guerra assassina, só portugueses morreram mais de dez mil. E consegue achar algum respeito, alguma dignidade nestas coisas, ó homem? Não se esqueça que foi a Revolução que lhe trouxe as férias pagas, o subsídio de natal e de férias, os hospitais, o direito à educação, a segurança social, o subsídio de desemprego…
– Pois foi – admite José – Mas para quê? Para isto agora estar nesta desgraça? Oiça, eu concordo consigo! Eu não sou salazarista mas…
– Fascista! Diga fascista…
– Só acho que isto só lá vai ou com outra ditadura ou à bomba! – e atira violentamente o braço como uma funda, num gesto torpe.

Sandra já ouviu esta história mil e uma vezes: «Isto era pôr uma bomba… eu cá matava-os a todos… isto só lá vai com outra revolução…». E mil e uma vezes já se dedicou a ouvir e a explicar, desmontando os mesmos argumentos com a mesma incansável paciência, porque, Sandra sabe-o, a culpa de tanta confusão política, da «crosta bruta que o soterra», não é de José. Haverá trabalho mais heroico que a política de rua? Que todos os dias desenleia as mais desarranjadas trapalhadas ideológicas, dando método e clareza a sentimentos justos e emoções legítimas? «Deixem a troika em paz! Mandaram para cá a troika para correr com os corruptos…», «eu vi num documentário que isto é tudo um planos dos “Illuminati”, os gajos do 11 de Setembro, tás a ver?» ou «O que é preciso é uma revolução interior, é disso que eles têm mais medo: que comecemos todos a cultivar a nossa própria horta».

– Qual bomba, homem? Mata o primeiro-ministro, e depois? Metem lá outro ainda pior! A gente precisa é de lutar! De fazer greve e vir para a rua! De pôr lá um governo que sirva o povo! O problema é que nós, que sofremos isto na pele, continuamos a votar nos mesmos!
José, já escarlate, com a fronte a brilhar de suor, esclarece – Eu não! Eu cá voto sempre no Coelho, o da Madeira! Esse é que é! Tem-nos no sítio! No outro dia foi fardado lá para o parlamento! – Sandra escuta paciente. É dirigente sindical. Vota comunista. – Olhe, a senhora sabe?! O que nos falta é um líder forte! Como os de antigamente! Porque os portugueses sozinhos não vão lá! Já viu os espanhóis e os gregos? Esses não estão para brincadeiras! Vai tudo pelos ares! Mas esta gente aqui é uma pasmaceira! É só fumaça! – e, abrindo os braços como um urso pré-histórico, conclui: – Era uma bomba naquele parlamento!

Nesse momento, uma senhora ao lado de Sandra, mas do outro lado do corredor, também se vira para trás e, incomodada com a discussão, arremete:
– Desculpe mas está enganado. O que faz falta é as pessoas compreenderem que não podem viver à custa do Estado. – Anabela, tão recatada, não queria mesmo dizer nada, mas esta conversa de bombas e lutas enerva-a profusamente. É dentista de profissão. Quando um comunista lhe oferece propaganda recusa com um «deixe estar…» e (nunca nos diria) vota PSD, embora não goste muito «deste novo». Gostava do Sá Carneiro, a tia Cucha foi sua secretária. Do que não gosta mesmo nada é de extremismos. Nem de «ismos» em geral.

– Quem vive à custa do Estado são os banqueiros! – Corrige Sandra – que levam os bancos à falência para depois nós pagarmos a factura. Quem vive à custa do Estado são os especuladores que não pagam impostos! Quem vive à custa dos Estado são os grande grupos económicos a quem estamos a pagar a dívida. – Anabela, um pouco surpreendida, discorda:
– Quem vive à custa do Estado é quem acha que pode viver de subsídios e passar os dias no café ou na internet a queixar-se da vida. – Anabela não gosta de queixinhas. Queixar-se não adianta nada: devíamos ser todos como Rita, que agora quase dorme e a quem os pés doem, que não pode ir ao cinema nem ao teatro nem a lado nenhum porque nunca tem dinheiro e não se devia queixar. Anabela no fundo só quer que sejamos todos mais «positivos», que «acreditemos». Porque se acreditarmos, tudo é possível (força!) e as energias positivas dos nossos sorrisos branqueados são o motor da história universal. Afinal, quem é que precisa de direitos quando podemos ser positivos? Conta-se que antes a última invasão do Iraque, alguns dos principais generais estado-unidenses avisaram Bush de que a guerra não poderia ser ganha. Bush mandou substitui-los a todos por estrategas mais «positivos» que «acreditassem» que era possível.

– Olhe, o que faz falta – continua Anabela – É queixarmo-nos menos e trabalharmos mais, – Anabela acha que o povo português é preguiçoso e precisa de um capataz.
– O que faz falta – queixa-se José – É um político com tomates que meta no xadrez quem anda a roubar – José acha que o povo português é fraco e precisa de um líder forte.
– O que faz falta – acrescenta Sandra – é que quem trabalha também lute, para que um dia governe e se vá embora quem explora. – Sandra acha que o povo português é forte e se basta a si próprio.
– Ai, eu gosto é da «luta»! – Confessa Anabela, com um esgar de sarcasmo – Queixam-se de que não há trabalho, mas depois querem é greves para não trabalhar! «CGTP! Parasita nacional» – e levanta o punho esquerdo para completar o calembur.
– Sabe porque é que eu faço greve? – Pergunta Sandra, agora irritada – Porque cada vez trabalho mais e cada vez ganho menos! Está-me a chamar preguiçosa?
– Não se enerve… Tenha calma… – Diz Anabela, num plácida cadência doutoral. Mas a sugestão tem o efeito contrário e Sandra responde muito alto:
– Não, não tenho calma! Que na minha rua há gente que já não ganha para a luz!

Num ronco assustado e sorvido, algum passageiro desperta. Rita, ouvindo o escalar da discussão, reemerge da modorra do i-phone. Com um baque, uma esférula de água rompe o silêncio do autocarro e trepa a vidraça. É a chuva que recomeça, a conta gotas de tinta preta.

A partilha de ideias desaguou neste silêncio desconfortável, que talvez também seja do sono que todos também partilham e levam estampado na cara. Não apenas o sono de uma longa viagem, mas aquele sono perene, mal disfarçado e mal dormido da gente trabalhadora que trabalha demais. Sandra virou-se para a frente. Está cansada. Às vezes, tem vontade de imitar quem não luta para lhes mostrar como seria o mundo se ninguém fizesse greve nem houvesse manifestações. São muitos anos disto, a lutar contra a corrente, a levantar mais cedo para distribuir papéis, a dizer a quem não quer saber que não é verdade, que os políticos não são todos iguais. Mas se os políticos são todos iguais, se não há mesmo nada a fazer, então desistamos todos de uma vez: que não haja nenhum deputado a votar contra o fim do Sistema Nacional de Saúde, que ninguém proteste quando o governo decidir aumentar o IRS e o IVA. Deixemos os ricos fazer a política, desistamos de tudo, sentemo-nos todos! É isto que às vezes pensa Sandra quando a desesperança morde. A desesperança é uma lenta debulhadora locomotiva que traga factos e opiniões e, devagar, também te traga a ti e a mim. Esta máquina infernal liga-se um dia e só pára quando, ao cabo de oitenta anos, já devorou tudo o que justificava a vida. E mesmo assim Sandra insiste e insistirá (porque é gente) em plantar a sua espiga no fim da seara em chamas.

Enquanto a tempestade não chega, nuvens pegajosas empastam o céu de placas chumbo. A paisagem é a mesma até onde os olhos alcançam, despida de árvores e alisada de tudo, sem nada que se levante da terra nem lhe atire sequer uma sombrinha.

Rita não regressou ao seu telemóvel. Embalada pelo largo rumor da chuva, segue as gotas na janela com uma expressão mole. Continuará a delegar o rumo da sua vida naqueles que a exploram, sem se achar capaz de compreender o mundo, quanto mais de o mudar. Continuará a culpar-se a si e só a si pela sua própria pobreza. E continuará calada e debulhada pela desesperança, como (já dizia o poeta) um cão velho e pronto para a morte que já não responde ao dono. Até um dia.

Também José irá calado o resto da viagem. No fundo sabe que Sandra tem razão. Apesar de não saber muito de política, o instinto indica-lhe às vezes o lado certo da barricada. E por uma questão de orgulho não o admitirá, mas pela primeira vez, já nestas europeias, votará na CDU.

E a Anabela o que mais surpreende é a desenvoltura daquela operária, a força das suas palavras e a imensa cultura que elas transpiram. Estava à espera que a mulherzinha, que parece tão fraca, não lesse mais que a revista Maria e de política só soubesse fragmentos desconexos. Dificilmente poderá Anabela compreender que lutar é a maior demonstração de cultura. Quantos tratados filosóficos, quantas aulas de história serão necessárias para transformar em vida a certeza de que só as massas podem virar este tabuleiro e impor novas regras ao jogo? Anabela não compreende essa força. A força do proletariado, que está fraca sendo forte, que tem a inteligência sem ter as armas, que tem a vontade sem ter o dinheiro, que tem a capacidade sem ter o Poder. Anabela não compreende que os que hoje estamos mais fracos havemos de vencer. Valha-nos a dialéctica das línguas romance e a diferença entre o estar e o ser. Porque é grande a nossa força e dos fracos não reza a história.