Das armas e os barões assinalados da epopeia ao povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas da anti-epopeia, talvez sejamos tudo isso, mas será que agora importa? Talvez sejamos barões e burros de carga; tudo daí para cima e para baixo, mas será que ainda nos servem de alimento real e concreto as epopeias e as anti-epopeias? Será que vamos continuar a deixar que nos definam, do alto, enquanto povo, a deixar que a literatura dos outros diga ao mundo e à história dos vencedores o que fizemos e não fizemos, se vamos além da Taprobana ou que não vamos a lado nenhum? Afinal o que importa? Será a literatura que vemos ao longe e nos dá força ou nos deita abaixo; que ora nos cega com glórias do passado, ora nos agarra pelo colarinho e nos acusa de catalepsia ambulante? Não é a literatura, senhores. Nem a crítica de arte nem a câmara escura. Não é, pelo menos, a literatura lá de longe.
Há um presente em que os barões já se puseram convenientemente a milhas, um presente em que burros só para fazer festinhas e um presente como batalha que urge ser travada com o que o presente tem. E o presente está cheio de tudo. Inclusive de coisas acabadas de escrever: ainda há quem o faça e haverá espaço para tudo, ele há tanta maneira de compor uma estante.
Isto é, as lutas de hoje não se fazem só com a literatura de ontem. É pôr os cintos de segurança.
Há a literatura que ganha mofo nas estantes e nas caixas, a literatura que já só faz feliz as traças que a comem, a literatura que não deixam que ganhe mofo porque ainda serve, a literatura que como não serve não tem os seus autores impressos em postais, a literatura que nos fez quem somos mas que não nos pode estancar; há a literatura escrita neste preciso momento e a que não foi escrita ainda. É nesta última que temos lugar; nesta última que temos espaço para mexer, gritar, organizar; contar a história do presente porque é nele que estamos. É esta última que vai cantar a luta que virá e que ninguém fará por nós. A literatura também não faz nada sozinha.
Afinal o que importa? Continua a não ser só a literatura. Afinal o que importa é não ter medo, são as mãos que seguram os livros mas que também sabem arredá-los para ir às ruas, às fábricas; para colar cartazes ou distribuir propaganda. São as mãos que escrevem mas que servem para muito mais; as mãos que sabem até rimar, mas que também cá estão para erguer estruturas em tubo, pintar murais e amparar outros tantos pares de mãos que uivam famintas de futuro. Afinal o que importa são os olhos que lêem mas que estão atentos ao que as palavras ainda não disseram; são as pernas que se sabem descruzar ao compreender que isto não vai lá só com literatura; são as mangas que se arregaçam quando percebem que é preciso mais do que papel; os pés que não têm medo dos calos; as vozes que se passaram a ouvir depois de outras mãos lhes terem distribuído um documento que quer saber delas e que são as mesmas vozes que agora se erguem em tom combativo, não esquecendo a ternura. Afinal o que importa é não ter medo, pois.
O que importa é a união e a partilha. A literatura que nos interessa é para todos e não cabe entre quatro paredes, por mais altas que as possam fazer. É uma nação de poetas, sim, mas eles precisam de quem os abane para que nos abanem a nós. Pela nossa parte, abanaremos, por palavras que cheguem a todos e que não se esgotem em si mesmas. O que importa, afinal, o que importa? São as mãos que se tornam punhos cerrados e que florescem de braços pulsantes; as mãos que da literatura fazem vida, combate, mudança; as mãos que fazem da literatura outra coisa além das palavras, para que às palavras também cresçam mãos.
Deste lado somos muitos de caneta em riste, em uníssono e cheios de mãos. Mas também não temos só as canetas: temos a voz, os punhos, os corações e tudo.