Amor é Comunismo

Nacional

Amor é comunismo (Já está. Agora vá, faz lá esse sorriso cínico. Pronto. Já passou? Então respira fundo, deixa-te de merdas e lê-me lá até ao fim, se faz favor).
Quando em 2006 Chávez foi reeleito, o parque de Miraflores trocou o verde tropical pelo vermelho sanguíneo. Era a imensa multidão dos pobres de Caracas, pobres de uma pobreza antiga, que tinha vindo ouvir o Presidente, o seu Presidente. E por segundos, quando Chávez falou, a praça pareceu tomada de um silêncio imperscrutável – misterioso. Como se quinhentos anos de servidão tivessem por fim findado ou um velho encantamento se levantasse ao som das suas palavras: “Que ninguém tenha medo do socialismo, porque o socialismo é fundamentalmente humano: socialismo é amor, é solidariedade (…) e o meu coração declara-vos o meu amor infinito”. Não é difícil sentir a franqueza de Chávez, mas mais que genuíno, recuperava uma ideia problemática e inexplicavelmente esquecida pela esquerda: a ideia de que o comunismo é o nome político do amor.

Olha, não sei se me estás a achar ridículo (estou?!), mas estarei bem acompanhado no meu cuidado, que também Guevara partilhava quando “mesmo correndo o risco de parecer ridículo” arriscou que “o verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor”. A ideia não é original e de Kollontai a Lenine, que chorava quando ouvia a Passionatta de Beethoven, passando por Estaline, que achava o Lago dos Cisnes a mais bela metáfora do socialismo (calma, não desças já à caixa de comentário) o comunismo nunca renunciou ao amor como estro e leitmotiv do proletariado. Aparentemente, só Mao Zedong discordava de mim: o revolucionário chinês terá uma vez dito que “comunismo não é amor: é um martelo com que se golpeia o inimigo”. Não faz mal. Tudo indica que Mao era um péssimo amante.

Amor e Capitalismo

Ao explicar a natureza fetichista do capitalismo, Marx apontava que as coisas pareciam ter uma vida própria e que “o dinheiro parece apaixonado pela mercadoria”. Ao desenvolver exponencialmente o conceito de “amor romântico”, o capitalismo criou a ilusão de um amor independente dos amantes, uma espécie de cheque em branco que nos promete emoções cada vez mais fortes e cada vez mais superficiais, à medida que nos faz crescer na boca uma bílis de ansiedade e insegurança. Quanto mais nos promete o ideal de romance capitalista, mais careca parece o cheque: quando o Notting Hill já não promete lucro emocional, investe-se no Pretty Woman e por aí fora, até às Sombras de Gray. Ao especular continuamente com a prostituição do amor, o capitalismo cria uma enorme bolha que desvaloriza brutalmente a natureza do verdadeiro amor: ágape, filia e eros.

O que sobra é a Madame Bovary pós-apocalíptica, uma Emma paranoicamente apaixonada mas incapaz de amar, que compra e consome compulsivamente entre a desilusão e o aborrecimento até as dívidas emocionais e financeiras a deitarem ao suicídio. É assim nos nossos dias: o amor das donas de casa desesperadas, mais desesperadas que donas de qualquer casa; um amor pré-fabricado, contraplacado, embalado em plástico e pronto a comer. Qualquer coisa a que podemos chamar de capitalismo emocional, um nome bonito para o consumismo do espírito dos outros. Alexandra Kollontai vai mais longe: “O «individualismo cru» que adorna a nossa era não é tão gritante em nenhum lado como na organização das relações sexuais. Uma pessoa quer escapar da sua solidão e, ingenuamente, imagina que «estar apaixonado» lhe concede o direito à alma da outra pessoa: o direito de se aquecer nos raios daquela rara bênção de proximidade emocional e compreensão. Nós, individualistas, desperdiçámos as nossas emoções no persistente culto do ego. Imaginamos que podemos atingir a felicidade de estar num estado de «grande amor» com aqueles que nos são próximos sem termos de oferecer nada de nós mesmos. As reivindicações que fazemos ao nosso «parceiro contratado» são absolutas e indivisíveis. Somos incapazes de seguir a simples regra do amor – que a outra pessoa deve ser tratada com a maior consideração.”

No entanto, a destruição do amor não é apenas o corolário emocional e cultural da expansão do mercado capitalista a mais uma área da vida humana. É politicamente motivado. Porque o modo de produção capitalista é incompatível com o amor, de temperamento comunista. Assim, desenvolve-se aquilo a que Richard Sennett chamou de “flexibilização do amor” a par do nascimento do ser humano sem comprometimentos nem horários. No mesmo sentido, Zygmunt Bauman, em “Amor Líquido” descreve a fragilização dos vínculos emocionais como um processo de mercantilização do desejo e do sexo a par do amor, que ao mesmo tempo se banalizam e atomizam, criando um ser humano ainda mais alienado. Um estranho de si mesmo num universo aleatório.

O capitalismo, por natureza individualista e egoísta, é incompatível como amor-ágape, o bem-comum, que é sempre colectivo e se projecta no próximo. Também o amor-filia, a amizade e companheirismo, tornaram-se inconciliáveis com o espírito do capitalismo desregulamentado, flexível e desvinculado. E quanto ao amor-eros, o capitalismo até tinha prometido libertá-lo, mas, como escreve Kollontai, “quando libertamos a sexualidade, os problemas do amor continuam por resolver” porque eros não se pode cumprir sem filia e ágape.

Em capitalismo, como cantavam os irlandeses, “Não há tempo para o amor” porque a sanha do “sucesso” manda-nos trabalhar sempre mais; comanda-nos ser fluídos sem nos prendermos a nada; ordena-nos que sejamos empreendedores e realizemos o nosso verdadeiro potencial pela arte de não desperdiçar oportunidades profissionais. Então, como alternativa, o capitalismo vende-nos uma versão amansada e domesticada do amor verdadeiro, ou como escreve Slavoj Žižek, um amor sem amor, como a cerveja sem álcool, ou o café sem cafeína.

A solução do capitalismo, o “amor sem amor” é o único compatível simultaneamente com os horrores do mundo e com a ideia de sucesso. É um amor eminentemente budista, na plácida indiferença com que encara o outro e, apesar de revestido de sexualidade, esta assume-se como uma troca de prendas, um contacto entre dois narcisos que, na verdade, era a si mesmos que se queriam amar.

No “Elogio do Amor”, o filósofo marxista Alain Badiou encontra o exemplo acabado do “amor descafeínado” que Žižek ataca: sites como o OKcupid ou o Meetic recolhem a nossa informação sobre todas as nossas preferências, gostos e opiniões através de centenas de perguntas. Depois, encontram as pessoas mais parecidas connosco e atribuem-lhes uma taxa de compatibilidade amorosa com base no número de respostas iguais. Assim, reúnem-se todas as condições para o amor burguês: uma relação estável com o espelho, sem compromissos, sem surpresas, sem riscos e, sobretudo, sem a diferença.

Comunismo e amor

Adorno tinha razão para desconfiar da presença do amor no discurso político. Pela sua natureza violenta, o amor tem sido comensal de populismos vãos e forragem de prados democraticamente menos férteis. Badiou, que também é categórico ao afirmar que “a política é o oposto do amor” e que “o amor começa onde a política acaba” alerta ao mesmo tempo para a excepção da “hipótese comunista”: O amor replica para os amantes a estrutura do comunismo. O sujeito do amor não é o indivíduo nem a sua satisfação individual mas o “casal” e a sua felicidade, estendendo as possibilidades do colectivo e assumindo frontalmente a vulnerabilidade do eu.

O amor que o comunismo propõe à humanidade pode ser historicamente seguido até à ideia de “bem” em Platão, provavelmente o primeiro a compreender a universalidade imanente e incontingente do amor. Mais tarde, o cristianismo desenvolveu-a e aperfeiçoou-a, dando-lhe porém um carácter transcendente, sobrenatural e passivo-agressivo. Até que, por fim, a doutrina comunista veio humanizar o amor cristão, transformando-o na ligação entre as solidariedades, um reconhecimento indivisível da humanidade do outro na nossa própria individualidade, ou, na pena do próprio Karl Marx: “(…) Teria consciência de servir de mediador entre ti e o género humano, de ser reconhecido e sentido por ti como um complemento do teu próprio ser e como uma parte necessária de ti próprio, de ser aceite no teu espírito como no teu amor(…)”

A escatologia comunista encarna, assim, a mais pura definição de amor: a ideia de que a tua felicidade é compatível com a minha e a certeza de que eu não valho nada sozinho, sem ti. Como a premissa fundacional da filosofia burguesa é o contrário, que os indivíduos só se movem por interesses próprios, amar transformou-se em acto subversivo e o amor em ideologia revolucionária: o amor não é um investimento lucrativo mas um exercício de confiança que, ao mostrar o mundo a partir da diferença do outro. permite intuir a universalidade humana. É por isso que o capitalismo tratou de remover o amor da esfera pública, substituindo-o pelo egoísmo, pela ganância e pelo ódio. O antiquíssimo conceito de amor-comum, ágape, foi privatizado e limitado às claustrofóbicas assolhadas dos nossos apartamentos. Urge devolvê-lo às ruas, violento e poderoso como a morte.

O comunismo abre a possibilidade de, nas palavras de Rimbaud, “reinventar o amor” para além dos preços dos mercados, das rendas das casas, dos bombardeamentos, da alienação, da fome e dos cartazes publicitários. O comunismo trará, como escreveu Kollontai “um amor desconhecido da sociedade comercial, um amor livre e baseado na verdadeira igualdade”. Até lá, não só nos resta irmo-nos amando por entre as grades da prisão. Há que deitá-la abaixo.