Ao cuidado de Miguel Gomes e do cinema

Nacional

Quando o Governo PSD/CDS fez aprovar a lei do cinema em 2012, num contexto de penumbra e falta de recursos, o sector foi seduzido por um discurso de abundância que só o PCP combateu.

O financiamento da criação e produção cinematográfica em Portugal esteve sempre demasiado dependente da participação de privados, com excepção dos anos logo após o 25 de Abril de 1974, durante os quais o Estado assegurava um financiamento com base nos princípios do empréstimo, garantindo os recursos a todos os que apresentassem um projecto que cumprisse os critérios técnicos necessários e recebendo de volta os fundos emprestados apenas quando a bilheteira o permitisse. Esse regime, limpo de critérios de gosto e de imposições estéticas ou mercantilistas, durou pouco e foi liquidado pelo primeiro Governo PS, logo em 1976. O PS começava cedo a mostrar ao que vinha também no cinema.

A dependência financeira criada desde então junto dos privados teve impactos tremendos na quantidade e na qualidade da produção. Porque a quantidade e a qualidade estão intimamente ligadas. É preciso produzir muito, experimentar muito, investigar muito, para que sejam criadas as obras-primas.

Em 2012, o sector estava sujeito a um sub-financiamento terrorista. O Governo PSD/CDS não realizava os concursos nem libertava verbas, a pretexto da diminuição da receita privada que financiava o ICA. Usou esse sub-financiamento para colocar todo o sector a exigir uma nova lei de financiamento. E o sector aceitou a cenoura e exigiu uma lei. Essa lei estava preparada pelo Governo e apresentava uma solução mágica: novas taxas sobre privados que substituiriam as taxas em queda previstas na legislação anterior. O sector pressionou mesmo o PCP para que o PCP defendesse essa lei.

Em boa hora, o PCP alertou o sector para os efeitos dessa opção política. Em boa hora, o PCP pensou pela sua cabeça, pelo seu colectivo, e não pela pressão exercida pelo governo, pela comunicação social e pelos próprios profissionais do cinema que, pressionados pela seca, aceitavam água contaminada com prazer. Exigiam-na até.

O PCP propôs sempre que fosse o Estado a assegurar a principal fatia do financiamento à produção cinematográfica. O Cinema não é uma arte menor. Se todas as restantes artes são financiadas directamente pelo orçamento do Estado, por que raio deve o cinema ficar refém dos fornecedores de televisão por cabo? Por que raio deve o Cinema ficar dependente do número de pessoas que subscreve esses serviços?

O PCP propôs então que o Estado devia entrar, no mínimo, com uma parcela igual à recolhida em taxas, parcela adicional ao custo de funcionamento do ICA, ANIM e Cinemateca que seria sempre o custo base do esforço estatal. Ou seja, na proposta do PCP, o Estado assegura o funcionamento dos institutos públicos e apenas conta com apoio privado para pagar 50% do investimento em produção nova. Tal nunca foi aceite pelo Governo PSD/CDS nem pelo PS, aliás, verdadeiro autor da lei, sendo que a lei estava preparada desde os tempos de Gabriela Canavilhas, apesar de ter tido a abstenção do PS na Assembleia da República.

A verdade é que com a aprovação da lei em 2012 e com as manobras do Governo PSD/CDS, a produção cinematográfica em Portugal ficou 2 anos sem concursos e sem financiamento. Mas problema fundamental de uma lei que faz depender o financiamento de uma arte dos agentes económicos que a exploram é político e vai muito além do problema criado pela suspensão dos concursos. A dependência criada demite o Estado do seu papel fundamental de apoio às artes e responsabiliza agentes privados directamente interessados em conteúdos.

Os comunistas alertaram isolados para esse problema, batalhando contra um sector que achava que os grandes grupos económicos e o monopólio das comunicações e da televisão iria financiar a actividade artística livre. A lei do cinema do PSD/CDS, igual à que o PS defendia (Canavilhas chegou a acusar o Governo PSD de estar a usar uma lei que ela tinha deixado pronta), renovava assim o mecanismo de financiamento privado do cinema, aplicando o modelo do mecenato obrigatório como solução para a produção cinematográfica em Portugal.

Ora, uma breve olhada pela História da Arte, demonstra que a virtude do mecenato reside na subsistência do autor, mas não sem o sacrifício da sua liberdade criativa. É precisamente essa limitação que o PCP quer eliminar ao responsabilizar o Estado pelo financiamento da criação e produção artística, incluindo no cinema, garantindo liberdade de criação e total ausência de constrangimentos estéticos ou mercantis.

A lei do cinema em vigor é o substrato em que o actual Governo PS provoca a intrusão no júri dos distribuidores de conteúdos, condicionando de forma absolutamente inaceitável o resultado dos concursos que determinam quais os projectos financiados e não financiados. Estamos portanto perante um Governo que entende que da obrigação de financiamento pelas operadoras privadas de TV decorre o direito a escolher em que se usa e aplica o dinheiro.

É mais ou menos o mesmo que perguntar à EDP, à Galp, à Banca, em que querem que se gastem os seus impostos.

Certamente diria a EDP que quer que os seus impostos sirvam apenas para financiar modernização de barragens, a Galp pediria que fossem usados em incentivos à compra de automóveis movidos a combustão e a banca exigira que os seus impostos fossem gastos em créditos bonificados para que mais pessoas pudessem comprar bens a crédito junto da banca.

Esta visão perversa, de submissão da produção cinematográfica ao mercado da distribuição de conteúdos liquida a componente criativa e artística do cinema e imprime-lhe a forma de entretenimento. O cinema pode ser visto como entretenimento, como arte, como ambos até. O que não pode é o Estado dedicar toda a sua política precisamente à produção que não carece de apoio que é a que merece acolhimento pelo mercado. São precisamente as expressões mais vanguardistas que precisam do apoio do Estado e não as receitas de blockbuster estudadas e conhecidas à exaustão. Ou seja, não se trata aqui de hipervalorizar o cinema de investigação ou de vanguarda, nem de penalizar o de entretenimento e diversão. Trata-se de definir qual é o papel do Estado no financiamento a cada uma dessas formas. A Constituição é clara: ao Estado cabe assegurar a livre fruição e criação cultural e artística e em nenhum artigo dessa lei da república surge a obrigação de subsidiar ou financiar artigos comerciais de entretenimento, ainda que sejam filmes.

Na minha opinião, o sistema de concursos devia ser apenas uma pequena parte do processo de financiamento da produção cinematográfica. Julgo que todos os profissionais do cinema que cumpram os requisitos requeridos por um projecto devem ter direito a usufruir de apoio do Estado na produção da obra pretendida, sem filtro de gosto, nem considerações subjectivas sobre qualidade. Acho, como acho para todas as artes, que o simples facto de cumprir os requisitos de admissibilidade para concurso deve gerar o direito ao apoio. O contrário provoca uma distorção subjectiva no resultado que é incompatível com a liberdade de criação e, logo, na de fruição.

Talvez seja cedo para exigir soluções destas, talvez não. Mas estou convencido de que é para lá que devemos caminhar. No entanto, sem prejuízo dessa posição, importa agora travar a intrusão dos agentes económicos na selecção dos projectos de cinema sujeitos a concurso.

Não deixa de ser importante referir que o PCP já afirmou, por mais do que uma vez, que tudo fará para travar esta nova ofensiva às liberdades de criação e fruição culturais.

Mas é preciso que fique claro: o problema reside na lei que faz depender o cinema das operadoras e enquanto esse problema não for resolvido, com a responsabilização do Estado, a intromissão privada na produção cinematográfica virá por todas as formas, com júri ou sem júri.

Que Miguel Gomes venha agora acusar o PCP de ter responsabilidade (https://www.publico.pt/2017/11/24/culturaipsilon/opiniao/nao-ao-decretolei-do-cinema-1793498) no resultado da lei que ele apoiou contra o PCP, faz-me alguma confusão, por ser o estilo de quem se preocupa com os apoios que recebe e não com a justeza do sistema que os distribui – e isso não é aquilo a que Miguel Gomes nos habituou.

Sim, porque o problema vai muito além dos filmes premiados e que têm a possibilidade de entrar no circuito de distribuição (a muito custo. Relembro até que o PCP propôs a exibição obrigatória de filmes – curtas, médias e longas – portugueses nas salas).

O problema é também das centenas de jovens realizadores que fazem sem apoios porque os os mesmos de sempre sempre abocanham os resultados dos concursos, deixando migalhas ou absolutamente nada para muitos criadores que fazem das tripas coração para ter um filme e que gastam tudo do seu próprio bolso para garantir uma produção e que investem o seu próprio tempo e dinheiro, contra tudo e contra todos, para fazer visualizações onde consigam;

Das iniciativas como o Shortcutz que de um bar passaram a vários países, os cineclubes que governos e câmaras foram destruindo e substituindo por um cinema itinerante pelo país que exibe filmes como o “Sei lá” também existem e ficam de fora dos parcos apoios a festivais já instituídos;

Daqueles que andam a telefonar às câmaras municipais a pedir apoios, que contactam equipamentos públicos para exibir os seus filmes porque as salas não os procuram e até rejeitam. É também aí que corre o sangue do cinema português, do verdadeiramente “novo” cinema português e é esse que está escondido. A lei actual e o status quo que beneficiou os grandes nomes não traz esse cinema para as salas. O decreto-lei que Miguel Gomes denuncia, tal como o PCP fez, também não traz esse cinema para as salas mas deixa tudo como está.

O financiamento do estado não pode servir apenas para financiar a actividade dos consagrados na ribalta, deve servir essencialmente para consagrar os que, ainda na sombra, merecem ser reconhecidos. Porque nós aqui vemos e divulgamos (http://manifesto74.blogspot.pt/2014/10/este-e-o-nosso-cinema.html#more), ou é dar um salto ao CineAvante, ou ler alguns jornais (https://www.jn.pt/artes/interior/parlamento-chumba-propostas-de-pcp-e-be-para-valorizar-e-apoiar-cinema-2565661.html) ou visitar a página do Parlamento e verificar quem tem mais projectos de valorização do cinema e das artes e respectivas votações.

E não somos cúmplices de coisa nenhuma. Nem por acção nem omissão.

*

Projectos de Lei

509/XII/3ª
Estabelece os princípios do financiamento da produção cinematográfica nacional e da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e assegura o financiamento correspondente aos anos de 2012 e 2013

446/XII/3ª
Estabelece os princípios do financiamento da produção cinematográfica nacional e da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.

407/XII/2ª
Altera a Lei n.º 55/2012, de 6 e Setembro que «Estabelece os princípios de ação do Estado no Quadro de Fomento, desenvolvimento e proteção da arte do cinema e das atividades cinematográficas e audiovisuais» apoiando a projeção e difusão do cinema digital criando mecanismos de apoio a cineclubes e associações sem fins lucrativos.

214/XII/1ª
Estabelece medidas de valorização e divulgação do cinema português.