Autoridade Tributária ou os mercenários dos impostos

Nacional

A história kafkiana dos processos de dívidas às finanças e do «combate à evasão fiscal» tem vindo a assumir contornos persecutórios, designadamente às famílias de menores rendimentos, enquanto assistimos ao acumular de um sem número de notícias sobre fraudes milionárias que sempre escaparam impunes.

Mas o processo contra os que menos têm é simples: tomemos como exemplo o caso das taxas de portagem das auto-estradas. O Estado concedeu a sua exploração a privados. Esses privados começaram a cobrar portagens. Como não querem empregar pessoas, colocam máquinas ou sensores.

As pessoas têm que se dirigir então a um dos postos autorizados para pagar. Não raras vezes os dados não estão disponíveis. Entretanto acabam os cinco dias que tinham para efectuar o pagamento. A concessionária fica de enviar uma carta com os valores. Não manda.

O processo vai para as finanças (apesar do Estado ter concessionado a auto-estrada a privados). Aí, é logo cobrada uma coima de 25 euros. A que acrescem custos administrativos. A que acrescem juros de mora. A que acresce uma multa que pode variar entre dezenas a centenas de euros.

As pessoas recebem a carta das finanças. Perdem um dia de trabalho e deslocam-se ao serviço de finanças para tentar perceber o que se passa porque a carta nada diz (em violação da lei, uma vez que a Administração é obrigada a fornecer todos os elementos para que as pessoas se possam defender). Nas finanças dizem que passou a portagem e vai ter que pagar. As pessoas não percebem por que é que têm que pagar 63,25 euros em vez de 50 cêntimos uma vez que tentaram pagar e não conseguiram e nunca receberam nenhuma carta da concessionária (a tal, a quem foi concessionado o serviço, decide cobrar taxas e transfere a responsabilidade do pagamento para o utente ou da cobrança ao Estado, o mesmo que concessionou a auto-estrada).

As finanças nada podem fazer a não ser cobrar. Entretanto, já passaram os 30 dias para a defesa da pessoa que foi notificada porque as finanças decidem contar o prazo desde a abertura do processo e não da notificação.

Agora, se a pessoa se quiser defender, tem que pagar o valor da multa acrescido de 25% se quiser evitar uma penhora.

É penhorado. Se se quiser defender tem que pagar 306 euros de taxa de justiça e esperar uma eternidade até haver decisão. Porquê? Porque, além dos tribunais estarem atolados em trabalho, as concessionárias não respondem. Podem sempre pagar os tais 60 euros e depois recorrer a tribunal para impugnar a dívida. Mas têm que pagar 102 euros e esperar a tal eternidade a ter a decisão.

Entretanto, o que acontece por vezes é que começam a chegar mais cartas. E os 60 transformaram-se em 200 euros. E não se percebe porquê uma vez que os 60 já estavam pagos. Lá vamos outra vez às finanças. E as finanças dizem que não podem fazer nada.

Entretanto somam-se as penhoras. Ultrapassam o valor legalmente definido – as pessoas têm que ficar com um rendimento equivalente ao salário mínimo nacional. Mas não ficam. Reclamam. Não recebem qualquer resposta e entretanto vivem abaixo do limiar da pobreza.

As concessionárias podem não disponibilizar os dados para pagamento e não notificar os condutores que têm que pagar. Podem também cobrar o que lhes apetece a título de taxas administrativas.

As finanças podem cobrar multas (sem nunca juntar os processos relativos ao mesmo contribuinte – coisa a que estão obrigados – na hipótese de ter mais do que uma taxa de portagem para pagar, cobrando assim multas por cada um dos processos), podem ignorar que as pessoas até já pagaram e continuar a abrir processos contra elas.

Se as pessoas se quiserem defender, têm que pagar não só o montante que lhes é ordenado como mais 25% ou pagar taxas de justiça absurdas para poderem exercer o seu direito de defesa.

Um dia, abrimos o jornal e lemos:

«Ana Dias (nome fictício) deve 1.900 euros ao Fisco, de Imposto Único de Circulação (IUC), porque há cerca de cinco anos mandou abater os dois carros da família e não deu baixa nas Finanças. “Eu sei que a culpa é minha, que devia ter dado baixa dos carros nas Finanças. Mas na altura nem me lembrei disso, não tive o cuidado de pedir os papéis na sucata. Não foi por mal”, justifica.  Às dívidas do IUC, não mais de 500 euros, somam-se agora as coimas avultadas. Diz que não tem ninguém que lhe possa emprestar esse dinheiro.

Ana Dias tem 52 anos, é viúva e mãe de seis filhos. A casa, onde vive com três dos filhos e mais duas netas, é posta à venda hoje às 10 horas. A notícia chegou-lhe há um mês. Ana Dias tem o salário penhorado há cinco meses.

Além disso, tem feito entregas semanais no serviço de Finanças da sua residência, de 50 ou 100 euros, conforme pode. É técnica de seca de bacalhau e ganha o salário mínimo. Antes disso estava desempregada, tal como os filhos.  “Nas Finanças, o que me dizem é que como não tenho hipóteses de pagar me vão vender a casa”. A “casa” é na verdade um pequeno casal, situado numa colónia agrícola, o que significa que também todo o terreno será vendido. Ora, nesse terreno está ainda construída a casa do sobrinho de Ana Dias, incluída no lote em venda. A casa vai hoje a leilão, avaliada em 19.500 euros, dez vezes mais do que a dívida que tem com as Finanças.  Ana Dias é apenas uma dos 59.590 contribuintes portugueses a quem o Fisco já iniciou processos de venda de imóveis este ano. Tantas quanto as iniciadas nos dois anos anteriores – 27.995 em 2013 e 27.902 em 2012 – e mais do dobro das marcações de venda de veículos (27.745) realizadas este ano.

Ana Dias recebe o salário mínimo e está penhorado. Mas diz o Código de Processo Civil no artigo 738º: «A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.»

A Ana Dias, os três filhos e as duas netas vão viver para a rua. Mas as finanças podem (!!!) penhorar ilegalmente o salário.

O próximo, podes ser tu.

Até quando?