Vêm aí os russos

Internacional

Apesar do histerismo de Nuno Rogeiro, o Washington Post já veio dizer que os aviões russos não violaram a soberania do espaço aéreo português. Mas vamos supor que sim. Vamos supor que há espaço para mergulharmos colectivamente no delírio de que os russos se arrogaram no direito de voar nos céus do nosso país. Façamo-lo uma vez que há tempo e que o ébola já abandonou as preocupações dos principais órgãos de comunicação social. Enquanto não houver brancos a morrer da doença, deixemos os negros às mãos dos únicos que deles se preocupam: os médicos cubanos.

Para já, dediquemo-nos aos russos que se atreveram a violar o nosso território. E é correcto falar-se de violação porque jamais nos últimos anos Portugal havia sofrido tamanha humilhação. Afinal, não estamos submetidos há várias décadas às decisões de Bruxelas e há vários anos às decisões do FMI. Se vivêssemos num país onde crianças acabam no hospital porque os pais não têm dinheiro para as alimentar, se vivêssemos num país onde doentes oncológicos acabam numa maca no meio da rua, se vivêssemos num país onde uma família acaba despejada da sua casa porque não pagou um imposto automóvel, se vivêssemos num desses países terceiro-mundistas em que os governos vivem à sombra da corrupção e se dedicam a esquartejar o que é propriedade de todos para o vender por tuta e meia às grandes multinacionais estrangeiras, então, sim, escusado será dizer que não teríamos qualquer preocupação com que dois aviões militares tenham sobrevoado o nosso espaço aéreo.

A soberania nacional é um dos elementos fundamentais para que o nosso povo possa conduzir os seus destinos sem qualquer ingerência externa. Não quero que nenhum aparelho militar estrangeiro entre em território nacional. Mas que a imprensa dê importância à mera aproximação de aeronaves russas quando nos Açores temos aviões norte-americanos estacionados de forma permanente parece-me anedótico. Mais anedótico se pensarmos que por aqui passaram voos secretos com prisioneiros destinados às câmaras da tortura da CIA. O que me parece útil discutir é a dissolução da NATO e o fim da ingerência dos Estados Unidos e da União Europeia na Ucrânia, Síria, Líbia e Iraque. O que me parece útil discutir é a ruptura de Portugal com instituições como o FMI. O que me parece útil discutir é a ruptura com a troika nacional que há quatro décadas ataca os direitos conquistados através da luta e desmantela as funções sociais do Estado. O que me parece útil discutir é a reconquista da soberania sobre o futuro colectivo do nosso povo.