Cancro: sou contra – és contra o quê?

Nacional

É a altura do Peditório Nacional da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Nos cruzamentos, semáforos, em vários locais, incluindo hospitais do Serviço Nacional de Saúde estarão pessoas, voluntários, que abnegadamente dispõem do seu tempo e da sua bondade para ajudar neste … peditório… convictos de que estão – e estão – a dar o seu genuíno contributo na luta contra o cancro.

Começa a altura em que as televisões, os outdoors, as revistas e a internet se enchem de um cartaz cuja face famosa varia, permanecendo a afirmação. Sou Contra.

Saltam logo as caras conhecidas a fazerem a sua campanha anual, com cara séria, a apelar aos sentimentos mais nobres de cada um de nós. No entanto, não consigo deixar de pensar naquela frase. «Sou contra.». Mas contra o quê?

Contra o fim da isenção de taxas moderadoras para os doentes crónicos? É que um doente com cancro não tem necessariamente que morrer. Pode ser «tão só» um doente crónico sujeito a tratamentos duros, invasivos e desgastantes. Pode mesmo ter derrotado o cancro e ficado com algumas das muitas consequências da sua presença. Mas se essa consequência não estiver tabelada, este governo não o deixa ter a sua doença – que é crónica – e, consequentemente, até pode ter que ir ao hospital três a quatro vezes por mês. E, de todas as vezes, terá que pagar taxa moderadora (7, 75 euros), exames (desde 4 euros de uma análise ao sangue até aos 40 e muitos euros de uma colonoscopia com sedação e biópsias), urgência (20 euros). Se não tiver dinheiro, não faz os exames nem vai às consultas. Pode ter a sorte de ter uma recidiva e, voltando o cancro, volta a estar isento. Mas isto se tiver a sorte de o cancro voltar.

Contra a inexistência de medicação de última geração nos hospitais? É que como a medicação é muito cara, este governo tem optado por não dotar os hospitais do SNS e, assim, os doentes cancerosos fazem uma medicação menos eficaz, com menos probabilidades de resultados eficazes, com terapias mais invasivas e dolorosas ou não fazem nenhuma porque o medicamento não é vendido nas farmácias e mesmo que fosse, não tinham dinheiro para o comprar.

Contra a recusa de tratamentos paliativos porque são dispendiosos? É que são recusados numerosos tratamentos com vista apenas ao bem-estar de doentes cancerosos em estado terminal, e como vão morrer e vão, bem podem morrer com dores que se calhar ninguém vai perceber porque eles já nem falam.

Contra o fim do transporte gratuito de doentes? É que com as alterações deste governo, iniciadas com o governo PS ao transporte de doentes, se um doente com cancro tiver a sorte de lhe ser atribuído um transporte, só tem que caber no horário dos outros 6 doentes transportados na mesma ambulância e assim, quando vai fazer o tratamento a um hospital a 60 km da sua residência (ah, sim, várias valências estão encerradas!) só tem que ficar o dia todo fora de casa, sozinho (vá, na companhia dos outros doentes que não conhece de lado nenhum), deste as 7 da manhã até às 18 porque tem que esperar por todos os tratamentos (uma vez que a ambulância, como é evidente, só vai fazer uma viagem).

Contra o preço absurdo da medicação? Particularmente aqueles medicamentos mais capazes do controlo da dor, esses também não são a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e necessários e mesmo que sejam, a pessoa com cancro tem que escolher. Ou toma os que tem mesmo que tomar ou…

Contra a inexistência de um regime laboral e de segurança social de protecção aos doentes com cancro? Pois, é verdade! Quem tem cancro não tem um regime que tenha em conta o natural absentismo de pessoas que têm que fazer quimioterapia, radioterapia – de novo, nem todos os doentes com cancro morrem! – e os proteja nesta situação tão complicada. A lei está há décadas por regulamentar e, graças a Mota Soares, os doentes com cancro (e todos os outros que estejam doentes por mais de 30 dias) têm direito a apenas 55% da sua remuneração base.

Contra o encerramento de hospitais? Esta é auto-suficiente, não é?

Contra a falta de médicos, enfermeiros, auxiliares, administrativos e outros trabalhadores nos hospitais e centros de saúde? (esta também se explica a si mesmo, vá)

Contra a inexistência de uma legislação laboral que permita a um membro da família (pai, mãe, filho, filha, avô, avó e outros parentes, já ficaram com a ideia) poder cuidar de uma pessoa com cancro sem ter que perder o emprego ou, optando pela «baixa» para assistência à família, perder o salário e apenas prestar apoio 15 dias? (é que às vezes dar banho, alimentar, cuidar, fazer companhia, amar, leva bem mais tempo do que isso…)

Sou contra. Contra o quê?

Eu sou contra a falta de dignidade na vida e na morte de uma pessoa. De qualquer pessoa. Particularmente quando essa pessoa tem cancro. E sei – sei-o de facto – que alguém com cancro não precisa de um peditório. Essa pessoa tem direitos. E esses, exige-se que sejam cumpridos. Um doente com cancro não precisa de esmolas. Precisa que o Estado assuma o seu papel, cumpra e garanta o seu direito à saúde e respeite a dignidade de cada ser humano.