Às vezes acontece-nos isto. Gente que até gostamos de ler, pessoas que nos fazem sorrir, que escrevem com elegância mas que, num momento de aparente menor lucidez, nos fazem regressar «à terra» e nos mostram como é ténue no comportamento humano a distância entre a qualidade e a boçalidade. É o que acontece com Miguel Esteves Cardoso e um seu recente artigo no Público intitulado “Escolher Israel”.
Aparentemente, o autor, de forma irónica, parece criticar quem escolhe um dos lados da guerra de forma leviana. Na sua perspectiva, tem-se escolhido quase sempre o lado palestino “contra Israel”. Contudo, podendo expectar-se que quem aponta o “erro” não o comete, certo é que se lê o resto do artigo e constata-se que acaba por ser o próprio autor a imitar exactamente aquilo que condena.
A verdade é que MEC “escolhe Israel” como quem escolhe vermelho ou preto na roleta de casino. Como quem escolhe a cor do cavalo numa aposta a dinheiro. Como quem vota no concorrente a expulsar numa qualquer casa dos segredos. Ou então, pior que isso, como quem escolhe o preto só porque a maioria escolhe o vermelho. MEC nunca me transmitiu propriamente a imagem de se tratar de alguém dado à preguiça mental, mas talvez as férias e a necessidade de ócio justifiquem tamanha leviandade relativamente a um assunto de proporções tão humanamente devastadoras. De outra forma, torna-se difícil compreender.
Atendendo a que o autor diz que “é preciso escolher Israel” sem consubstanciar com as razões da “escolha” – sim porque sim –, também não vou perder tempo a relembrar em detalhe a prolongada asfixia do território palestino que dura há décadas, inteiramente patrocinada a preço de muito sangue pelo imperialismo norte-americano, esse que é, como se sabe, um vasto semeador de “democracias” pelo mundo inteiro. Dessas “democracias”, aliás, de que MEC parece gostar tanto. Mas não posso deixar de me insurgir contra a forma como o artigo termina.
Quando MEC conclui, mas agora sem ironia e a falar muito a sério, que “é preciso escolher Israel tanto pela causa de Israel como pela nossa”, é bom que fique claro que nesse “nós” caberão por certo os que apoiam a barbárie como num jogo de apostas. Caberão as “democracias” impostas do rei-dinheiro ou os governos-fantoche dos grandes interesses multinacionais. Por outro lado, não cabem certamente os que não trocam a racionalidade pela diversão, a desgraça pela realidade ilusória, a argumentação séria pela boçalidade, a consciência histórica pela leviandade ou pela ironia sem ponta de graça. E ou MEC coloca os termos sérios nas questões sérias, ou então pautamo-nos todos pela discussão boçal de veraneio e devolvemos ao autor a acusação de “cobardia, aldrabice, desprezo e estupidez.”