Raios de sol em tempo e espaço de trevas

Nacional

O texto que agora se transcreve foi a alocução realizada por Mário Sacramento junto ao tumulo de “Licas” Seiça Neves, falecido com apenas 35 anos de idade.
Gostaria de salientar três aspectos. O primeiro, este texto foi lido e proferido em Portugal no ano de 1958(tendo sido publicado pelo República em 15 de Outubro), o que infelizmente importava um conjunto de cuidados políticos, e a natural utilização de diversos recursos estilísticos, sob pena de graves sanções. Segundo aspecto, a imensa qualidade literária que Mário Sacramento apresentava nos seus textos. Terceiro e último aspecto, com este texto faz-se uma pequena homenagem a Licas e a todos os que não chegarem fisicamente a Abril, e que, anonimamente, de Norte a Sul do país, sofreram as agruras, censuras, repressões e discriminações, de diversa índole, social, moral, política, profissional, entre outras, de que o fascismo foi tão bem capaz.

Em memória de um Democrata

Por Mário Sacramento

Pode-se ser bom e justo sem ambições de qualquer ordem, na vida ou na morte. Pode seguir-se uma linha de coerência ideológica sem nada esperar da sociedade; e numa linha de coerência moral sem nada esperar da religião. Pode ter-se uma consciência firme como uma rocha num corpo destroçado por todas as misérias físicas. Pode viver-se longe do Povo, num divórcio forçado, e prestar-lhe os mais desinteressados serviços, em intenções e em obras, em estímulos e sacrifícios, em ideias e em actos, muito embora sabendo que tais serviços, pela natureza deles próprios, jamais serão conhecidos nem porventura suspeitados. Pode ser-se fiel a uma aspiração de verdade, apesar de só a mentira e o cinismo cercarem a jangada em que vogamos à mercê dos terrores e das paixões. Pode morrer-se com sereno heroísmo, fora da convenção dos combates, e recusar esse mesmo heroísmo – fingindo que se acredita na mentira piedosa dos que nos rodeiam, para os poupar, tão só, ao desgaste afectivo da atmosfera do drama. Pode morrer-se pensando ainda e sempre nos outros, e só nos outros, como se fossemos a consciência que paira sobre os oceanos – prestes embora a extinguir-se como um farrapo de nuvem. Pode associar-se a mentalidade científica ao lirismo sonhado dos poetas. Pode amar-se os outros como jamais alguém nos amou. Pode lutar-se por um futuro que não será nosso – nosso de nós mesmos ou da carne dos nossos filhos. Pode viver-se e morrer-se em santidade laica sem que, haja sequer, a auto-consciência disso, e sem que um intelectualismo treinado nas consolações do abstracto nos dê rumores desse alvo. Pode ter-se o bravo senso comum de Sancho Pança num corpo e alma de D.Quixote. Pode albergar-se o pudor duma independência quase altiva, que não deixa aceitar sequer a doença própria como um encargo familiar ou alheio, – e estender a cada passo a mão da solidariedade ao nosso próximo. Pode viver-se como um justo no seio da injustiça, como um abnegado no seio do egoísmo, como um estoico no meio da futilidade e da sordidez, como um cidadão de amanhã no seio da noite medieval. Pode morrer-se pedindo desculpa das próprias canseiras dum enterro e dos esquálidos palmos de terra que vamos ocupar no chão do sem fim…

Pode, sim, pode-se! E pode-se, porque foi essa a lição que o justo e o bom que acompanhamos em seu último acto civil, a todos nos deu, a todos, repito, por melhores ou piores que sejamos, porque é impossível haver noutro homem uma soma de virtudes mais alta que aquela que a modéstia deste respirava como um ar de montanha. E era essa a lição que aqui havia de dizer-se porque à verdade só a cala quem a compra – e há verdades que não se vendem.

O engenheiro Seiça Neves, o querido Licas dos seus amigos, foi maior na singeleza do seu trato, na cordialidade do seu convívio, na capacidade da sua profissão, no aprumo do seu carácter, na sensibilidade do seu coração, na firmeza das suas convicções, na intransigência da sua luta pela democracia, na devoção do seu espirito de sacrifício, na dádiva criadora do seu eu, na subtileza duma consciência excepcional, foi maior – dizia – que todas as celebridades juntas cujos nomes desbotam ouro ou bronze pelas esquinas das várias artérias novas deste velho País. Conheci e conheço grandes homens – os quais não têm o nome pelas esquinas, escuso dizê-lo. Mas não conheci nem conheço alguém que fosse mais do que ele no acervo de humanismo que herdámos, como inspiração secular, da luta entre Jacob e o Anjo, entre a consciência e a matéria, entre o ideal e o real. Ele era a expressão possível em seu meio, do sal-da-terra a que se refere a alegoria bíblica.

O sal-da-terra, – em terra de sal do Mar!… O sal que nós, seus companheiros de jornada, levaremos no bornal da memória, para dele nos servirmos acampando ao longo dos anos a nossa marcha da esperança. Se um homem, porque não deixou um livro(embora mau), porque não pintou um quadro(embora medíocre), porque não foi ministro ou bufarinheiro da política, porque não foi campeão da bola, não merece ser honrado pelos seus contemporâneos, apesar de ter sido um farol de vida, um mestre da mais difícil matéria que há no mundo – a da cidadania; então, meu querido Licas, é bem verdade que está errado este meio social, é bem verdade que é justa e inadiável a nossa luta para o transformar, e que o teu exemplo de humanidade só pertence e interessa ao Povo, ao Povo que é formado de homens simples como tu. Mas tanto melhor se com ele ficas na própria morte. Os heróis, os santos, os génios do Povo não estão na história: estão no sangue, no suor e nas lágrimas desta prisão sem grades em que, apesar de olhos vendados, já percebemos a aurora.

Tu foste um mestre. Um mestre de vida, cujas obras e discípulos são gestos perdidos no etéreo do ar, gestos que acenam à madrugada que rompe, tal o perfume das estevas no levitar da manhã, – que tu anda há dias me conficenciaste haver sentido na ilusão de um sonho… A saudade que isso te fizera – disseste-me – da vida campestre, na tua aldeia natal! A saudade que isso nos faz, dizemos-te!… Mas também a saudade é uma força, se projecta no futuro uma esperança. E os teus gestos vão connosco, meu amigo, eles vão connosco, meu amigo: são as calhandras que batem asas pelo restolho, anunciando a marcha dos povos. Tu vais connosco, meu Amigo. Os mortos vão connosco à Liberdade. Eles vão connosco ao Futuro!

* Autor Convidado
Filipe Guerra