Ébola em perspectiva

Internacional

Coloquemos o Ébola em perspectiva:
– é uma doença tratável, cuja taxa de letalidade pode ser moderada a baixa mediante cuidados de saúde adequados;
– não é muito contagiosa, sendo transmitida apenas pelo contacto directo com fluídos de um paciente que já manifesta os sintomas (não é contagiosa durante o período de incubação), sendo o contágio evitável através das boas práticas de higiene médica.
Então porquê toda a histeria em seu torno? E se é tratável e pouco contagiosa, porque se propaga na África Sub-Saariana (AfSS)? A resposta tem em parte que ver com algo que o Ocidente teima em não querer enfrentar, pela responsabilidade que acarreta: a pobreza nesses países, incluindo a falta de acesso a comida, água potável, medicamentos e os cuidados de saúde, são o principal factor responsável pela alta taxa de doenças infecciosas e outros problemas?

Devo esclarecer que não pretendo menorizar o impacto da doença a título individual (é de facto uma doença horrível), nem o seu impacto sobre a saúde pública. Quero apenas colocar a questão em perspectiva e contrariar o alarmismo promovido pela a comunicação social ocidental que promove uma visão distorcida, por exemplo acompanhando as notícias sobre o Ébola sempre com imagens de pessoas usando fatos protectores, ou criando a sensação de ameaça iminente quando se pensa ter chegado a um dos “nossos” países alguém infectado, um alegado “Paciente Zero” num surto que se alastrará rapidamente. Os Estados reagem cancelando voos, e lançando novas medidas aduaneiras. Melhorar fariam, mesmo em termos de protecção da saúde dos seus cidadãos, em enviar médicos, medicamentos e outros material, e ajuda financeira para reforçar os sistemas de saúde na AfSS.

Cultura de medo

Porquê então este empolamento em torno do Ébola? A primeira parte da resposta é geral: o capital, sua comunicação social e os Estados a seu mando só têm a ganhar com instaurar uma cultura de medo, seja ele dirigido contra inimigos genéricos (o crime, a droga, o terrorismo) ou específicos (a Síria, as lojas dos chineses). Instalado um medo genérico, os mais específicos são mais facilmente reforçados. O crítico é ir alimentando sistematicamente o clima de medo, mesmo que assente na distorção de factos (por exemplo, dando uma cobertura mediática ao crime violento desproporcional  à sua incidência na sociedade). O medo permite não só justificar acções contra outros (uma guerra, sanção), como contra os direitos e liberdades individuais dos próprios cidadãos. O Ébola, em particular, favorece um discurso de “nós versus eles” relativamente à AfSS, tão conveniente quando, por exemplo, se pretende limitar o fluxo de migração.A segunda parte da resposta é específica ao medo relacionado com a saúde, neste caso doenças infecciosas, um medo que favorece o sector farmacêutico e afins.

Gripe Suína de 2009

Cabe recordar o sucedido em 2009, com a alegada pandemia da gripe suína (H1N1), que levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar, em Abril desse ano, e pela primeira vez, uma “emergência internacional à saúde pública”. O comissário da UE para a saúde aconselhou os europeus a adiarem todas as viagens não-essenciais aos EUA e México (onde foi primeiro detectada a gripe). Em Outubro, o Presidente Obama declarou uma emergência nacional. Por todo o Ocidente tomaram-se medidas de grande escala, incluindo a instalação dos aplicadores de gel desinfectante por toda a parte (quando uma boa lavagem de mãos já seria suficiente). Já durante o surto houve falta de gel, e houve vemos essas relíquias a cada canto. A encomenda de vacinas e anti-virais, em particular Tamiflu, foi de tal ordem que se esgotaram rapidamente, deixando as populações com a sensação que se encontravam desprotegidas perante um tsunami que se aproximava da costa.

Hoje sabemos que a taxa de infecção e fatalidade não esteve muito longe de outras gripes sazonais (foram até abaixo, mas deve-se dar algum desconto devido aos problemas em distinguir a gripe suína das outras gripes sazonais nesse período). Mas certamente não atingiram um nível que tivesse justificado a reacção. «Mas vale prevenir que remediar». O velho ditado poder-se-ia aplicar, não fossem as evidências que a resposta por parte das instituições oficiais foram influenciadas por grupos de pressão (os vulgo lobbies) do sector farmacêutico.

O lobby farmacêutico

Wolfgang Wodarg, responsável pela saúde ao nível do Conselho da Europa, acusou os produtores das vacinas e anti-virais de influenciarem a declaração de pandemia por parte da OMS (ver). Um terço dos peritos que aconselharam a OMS sobre a gripe tinham ligações à indústria farmacêutica, e cinco dos 15 especialistas do comité de emergência haviam recebido financiamento do sector ou tinham outras ligações (ver). Só na Grã-Bretanha foram gastos mais de 1.2 mil milhões de libras no combate à gripe, a maioria para vacinas, sob a ameaça que pelo menos 65 mil britânicos poderiam morrer. O vírus foi responsável por 457 fatalidades, um terço do número causado pela gripe sazonal.

O lobby da indústria farmacêutica é dos mais poderosos. Em 2012, foi revelado que gastava anualmente 40 milhões de euros (M€) ao nível da UE (face aos 3.4 M€ de grupos de interesse público), incluindo o emprego de cerca de 220 pessoas a exercerem pressão junto aos círculos de poder da UE (ver). Este é o total oficial, pois pode na realidade atingir os 91 M€, nível comparável aos EUA, onde é dos sectores que mais dinheiro emprega em lobbying. (O lobbying como um todo em Bruxelas é uma doença ao ritmo de mil milhões euros anuais, com cerca de 30 mil lobbyistas, quase um por cada funcionário ao serviço da Comissão Europeia.)

Voltando ao Ébola

Face ao referido sobre a doença no início, entende-se que mesmo que alguém infectado entra-se num país ocidental, a menos que se ponha a vomitar e a cuspir sangue por cima de pessoas no metro, não irá infectar muita gente, nem se verá uma espiral de infecção. Apesar da degradação dos nossos sistemas de saúde, estes estão muito acima dos existentes na AfSS. O mais provável é ser levado a um hospital ocidental, diagnosticado e tratado, terá uma hipótese razoável de sobreviver, como aliás sucedeu com os ocidentais que estavam na AfSS e foram trazidos de volta para os seus países.

Comparativamente a outras doenças, o Ébola em África tem até à data um impacto relativamente menor. Segundo Adam C. Levine, na África sub-Sariana, nos passados 6 meses, enquanto o surto de Ébola causou a morte de mil crianças e adultos, quase 300 mil crianças e adultos morreram de malária, a pneumonia causou a morte de quase 300 mil crianças, quase 200 mil crianças morreram de diarreia, e mais de 400 mil crianças e adultos morreram na sequência de ferimentos, como acidentes automóveis. Porém, devido a sua sintomatologia – é uma doença hemorrágica – e ser relativamente nova, é natural que inspire um pânico, que as outras doenças não provoquem, pânico esse que está a ser promovido, o que nos remete às vantagens da cultura do medo.

A atenção dedicada ao Ébola levou um painel ético da OMS a autorizar o uso de um soro experimental (ZMapp), que portanto não passou pelos necessários ensaios clínicos testando a sua eficácia ou efeitos secundários. Os seus produtores ficam assim isentos de esperar pela fase moroso normalmente exigida e podem vender o seu produto à Guiné, Serra Leoa, Libéria, Nigéria e outros, afligidos pelo Ébola. Cabe perguntar se os milhões necessários para comprar esta droga não seriam melhor empregues em meios menos vistosos e “avançados” como campanhas de prevenção e informação, construção de clínicas com condições para isolamento de pacientes, e aquisição de luvas, máscaras e outro equipamento básico que poderá também ser útil na prevenção e tratamento de outras doenças.

* Autor Convidado
André Levy