Jogos de casino viciados

Nacional

O sistema bancário e financeiro em Portugal é um jogo de casino viciado, onde a “casa”, ou seja quem deveria regular esse sistema, incluindo o governo, o Banco de Portugal (BdP) e a CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários), fecha os olhos, assobia para o lado, e faz pouco, tarde e mal.

Vejamos: o governador do BdP, Carlos Costa, afirmou a 3 de Agosto passado:

“O Grupo Espírito Santo (GES) através de entidades não financeiras não sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, situadas em muitos casos em jurisdições de difícil acesso [os vulgo off-shores], desenvolveu esquemas de financiamento fraudulento entre as empresas do grupo. (…) esquemas deste tipo são muito difíceis de detectar.”

Imagino que sejam difíceis de detectar. Por isso é que são usados. Mas suponho que essa será uma das tarefas dos organismos reguladores. Como escreve Eugénio Rosa, e muito bem, se não sabiam, deviam saber.

Até porque tais esquemas não são novos, nem é necessário ir muito longe no espaço e no tempo. Em parte o colapso do Banco Português de Negócios (BPN) deveu-se precisamente ao facto de financiar “empresas” off-shore, que depois transferiam créditos para empresas do Grupo Sociedade Lusa de Negócios (SLN), que detinha 100% do BPN. Após se terem levantado perguntas, mas sem que tenha havido qualquer acção por parte do BdP, o BPN passou a usar o Banco Insular (BI), sediado em Cabo Verde e depois de 2003 tornado virtual. Num jogo de empresta e esconde, o BPN-Cayman e BPN-IFI financiava o BI (nas mãos de pessoas ligadas ao BPN/SLN), que por sua vez financiavam as empresas da SLN.

A simbiose de um grupo empresarial com instituições bancárias, mesmo na presença de alegadas instituições reguladores, só pode favorecer a promiscuidade de oferta de crédito desmesurado (face à solvabilidade) da instituição bancária ao grupo empresarial, directamente ou por via de terceiros (4os, 5os, …). No caso do BPN/SLN tal era evidente: Oliveira e Costa presidia as duas entidades. Mas para as entidades reguladoras responsáveis, cumprindo o seu dever, situações menos óbvias deveriam estar sobre cuidadoso escrutínio, constantemente. Mesmo sem envolver off-shores a ligação do BES ao GES era até óbvia.

A ESI (Espírito Santo International), um holding de topo do GES (Grupo Espírito Santo), detinha 100% da Rio Forte, e através desta empresa a ESI detinha 49% da ESFG (Espírito Santo Financial Group), que geria o sector financeiro do GES, incluindo o BES e a Tranquilidade Seguros.

De 2011-13, a ESI, contrariamente à prática normal, não foi objecto de auditoria por parte de uma empresa, mas sim a título individual, por Francisco Machado da Cruz, um membro da Ecofin, membro da direcção da Rio Forte e BES-Angola, e presidente do Espírito Santo Plaza (em Miami). Como se poderia esperar que a sua auditoria fosse imparcial?

Acresce que as funções de auditor externo do BES (e empresas do GES) e Revisor Oficial de Contas (ROC) estavam a cargo do mesmo grupo, o KPMG. Como salientado por Eugénio Rosa, esta situação de promiscuidade é a mais comum entre os bancos em Portugal, sendo a CGD a excepção. A separação destas funções é um importante garante da qualidade da auditoria. Saliente-se que esta concentração de funções só é possível com o aval do Bando de Portugal, que tem portanto responsabilidade pela existência de um sistema que promove a fraude.

Torna-se evidente que podendo e devendo nós apontar os dedos aos bancos e empresas privadas, devemos igualmente culpabilizar as instituições que deveriam ter um papel regulador. Primeiro, por não cumprirem a sua função (e depois ainda terem o desplante de alegar desconhecimento). Segundo, porque as soluções que apontam, após o colapso do esquema de Ponzi, prejudicam directamente os cidadãos, a situação das contas do Estado, e a economia Portuguesa.

Contrariamente ao que vêem assegurando, a solução para do “Banco Novo” vai claramente prejudicar as contas do Estado, o que depois virá certamente servir de justificação para mais medidas de austeridade. Vejamos, o “banco bom” [que eufemismo!] resultante da divisão do BES, vai receber 4.9 mil M€. Destes apenas 500 M€ virão do Fundo de Resolução, um banco autónomo, criada por Vítor Gaspar em 2012 segundo orientações europeias, que conta com a participação de 79 bancos, instituições de crédito e outras instituições financeiras, e liderada pelo BdP e o Ministério das Finanças. Resultante das contribuições destas instituições e impostos extraordinários sobre o sector bancário, este Fundo tinha, no final de 2013, 182 M€ (ou seja, não tinha o suficiente para cobrir a sua parte de recapitalização do Novo Banco). E deste montante, muito provêm da CGD, ou seja o banco público, maior contribuinte do fundo. Donde virá o resto? [Este fundo é distinto do Fundo de Garantia de Depósitos. Sobres este fundo ver texto do Eugénio Rosa.]

O grosso desta recapitalização, 4.4 mil M€, virá do Estado, em particular de 6.4 mil M€ emprestados pela Troika. Este investimento será depois devolvido pelo Novo Banco ao Estado. Hah! Isso se arranjarem investidores. O cenário mais provável é que se consiga um valor inferior, tendo o Estado (nós) de pagar à Troika, e ir recebendo à medida que os bancos paguem ao fundo… Recorde-se a este respeito, as tentativas falhadas de privatização do BPN. Em 2010, deixando o concurso deserto, os potenciais investidores exigiram que o Estado aumentasse o capital social do banco em 500 M€ (já sob Passos Coelho veio a aumentar em 600M€). A Troika obrigou então o Estado a uma venda sem mínimo, colocando o prazo de final de Julho. Em 31 de julho 2011, foi vendido por 40 M€ [sic] ao Banco BIC Português. E um dos primeiros actos da nova instituição resultante da fusão do BIC pelo BPN, foi reduzir os capitais próprios no valor de… 40M€, valor esse usado para liquidar o empréstimo contraído para realizar a compra do BPN. Ou seja, na venda do “BPN bom” o Estado perdeu pelo menos 140 M€ (o preço base de venda), enquanto o BIC não gastou um tusto do seu dinheiro para o adquirir. Fomos nós que pagamos para que o BIC ficasse com o BPN! O total de encargos do processo BPN, incluindo o assimilar o buraco do “lixo” do BPN, pode ascender aos 7 mil milhões de euros, o equivalente ao que Portugal irá pagar este ano à Troika só em juros. E depois vêm com a ladinha que a culpa da crise são as famílias a viver para além das suas possibilidades…

[Nota: Mais que um artigo de opinião, esta é uma tentativa de fazer sentido das notícias sobre o BES/GES da parte que quem não tem formação em economia – como a maioria dos cidadãos –, sente dificuldade em acompanhar as notícias sobre o BES – idem – mas compreendendo a sua importância pretende neste ensaio organizar alguns apontamentos para começar a entender o que se passa, esperando humildemente que outros possam encontrar nestas notas também alguma clareza. Para tal foram muito úteis os textos de Eugénio Rosa e Honório Novo, entre outros.]

* Autor Convidado
André Levy