A sociedade do espectáculo é um estado de ansiedade permanente que reduz simultaneamente o espectador a vítima, cúmplice e paciente. À medida que a crise estrutural do capitalismo recrudesce e a previdência social recua, uma fina camada de marketing vai tomando conta das nossas vidas, das nossas inquietudes e dos nossos princípios.
A nova moda de despejar baldes de água gelada pela cabeça abaixo é somente a última moda do tipo de activismo político domesticado que o capitalismo aprova, recomenda e reproduz. Para além da parolice songamonga do acto, que nos dispensa o verbo e a pena, é oportuno denunciar a chantagem moral com que nos querem contagiar e pôr a estupidez de quarentena.
De George Bush a Manuel Luís Goucha, Cristiano Ronaldo e Barack Obama, passando por virtualmente todos as celebridades de Hollywood, já todos “contribuíram para uma causa” dando dinheiro ou molhando-se e, em todos os casos, fazendo figura de ursos. Mas esta espécie de licenciamento moral para o crime e para a indiferença não pretende apenas indulgenciar o consumidor de produtos de caridade, é também o subsídio cultural do marketing para a destruição das funções sociais do Estado.
A ideia subjacente ao vírus das redes sociais é nem mais nem menos que: «Nós os ricos não temos que ser obrigados a pagar impostos, porque doamos o nosso dinheiro voluntariamente e vocês pelo meio ainda se riem com a cena. Não curtes da Esclerose múltipla? Tá-se bem: eu apanho um granda banho com gelo e faço uma doação de 1000€. Achas que era fixe se os pretos em África tivessem computadores? Na boa: a minha empresa oferece tablets aos filhos dos mineiros que trabalham para mim a 10 cêntimos à hora.»
E no meio do desfile carnavalesco vamos distinguindo cenas bizarras: Goerge W. Bush, que legalizou a prática de torturar pessoas enfiando-lhes a cabeça em baldes de água, a enfiar um balde de água pela cabeça abaixo; Bill Gates a lutar contra a Esclerose lateral amiotrófica, o mesmo cuja fundação homónima investe milhões em empresas que espalham a doença e a morte no mundo, como a Monsanto, Cargill ou, pior ainda, Israel; Barack Obama, que desinveste milhões de dólares da Educação e investigação pública, a fazer doações de 100$ na investigação. Até Manuel Luís Goucha e Cristiano Ronaldo querem contribuir para a causa.
Independentemente da justeza e importância de combater esclerose lateral amiotrófica, não podemos deixar que sejam os caprichos e as vaidades dos privados a controlar o investimento em causas públicas. Portanto, caros ricos, celebridades e famosos: não queremos a vossa caridade, queremos os vossos bancos e empresas. Não queremos uma relação vertical em que vocês dão porque querem dar, mas se não quisessem dar também não davam. Não queremos doações, queremos impostos. Não queremos ver-vos no youtube a brincar com baldes, limitem-se a dar o dinheiro. E por favor não desperdicem água, usem ácido sulfúrico ou lava vulcânica.
Há que denunciar a hipocrisia de toda a caridade da classe dominante e das suas celebridades atoleiamadas. Num momento em que o ataque contra a investigação científica conhece o maior ataque de sempre desde a idade média e a natureza do próprio Estado parece regressar à sua exclusiva e medieva função de aparelho repressor da classe dominante, não há lugar para brincar à caridadezinha.