Como dois mundos

Internacional

“Mas não existe só o poder; existe também uma oposição ao poder. Em Itália essa oposição é tão grande e tão forte que ela própria também é um poder: refiro-me naturalmente ao Partido Comunista Italiano(PCI). Não há dúvida de que neste momento a presença na oposição de um grande partido como o PCI é a salvação de Itália e das suas pobres instituições democráticas.

O PCI é um país limpo dentro de um país sujo, um país honesto dentro de um país desonesto, um país inteligente dentro de um país idiota, um país culto dentro de um país ignorante, um país humanista dentro de um país consumista.

Nestes últimos anos entre o PCI -entendido num sentido autenticamente unitário – um compacto “conjunto” de dirigentes, base e votantes – e o resto da Itália, cavou-se um abismo: e é essa a razão pela qual o PCI se tornou precisamente um “país separado”, uma ilha. E é por isso mesmo que ele hoje pode manter relações estreitas como nunca com o poder efectivo, corrupto, inepto, degradado: mas trata-se de relações diplomáticas, quase de nação para nação. Na realidade as duas morais são incomensuráveis, entendidas na sua consistência, na sua totalidade.”
Pier Paolo Pasolini in Corriere della Sera, 14 de Novembro de 1974
Muitas vezes depois de ler este texto me lembrei dele. Em face da situação em que se encontra o nosso país, a sua situação política, económica e social, em que constantemente nos chegam notícias arrepiantes, de sucessivos despudores, favorecimentos, corrupções, compadrios, etc… em beneficio dos mesmos de sempre, sejam eles os grandes grupos económicos ou os seus agentes políticos.

O texto de Pasolini, ainda que escrito num tempo e espaço diferente do nosso, referindo-se até a um partido que já nem existe, corre o risco de transportar o leitor para a nossa actualidade(claro que com pequenos acertos e ajustes necessários). Porquê? Porque o leitor comunista, integrante do tal compacto conjunto(de dirigentes, base, votantes), quantas vezes confrontado com os escândalos das políticas de direita e dos seus sub-produtos como a corrupção, escândalos e sub-produtos tantas vezes menorizados e enquadrados na vida pública como acontecimentos banais pelo poder e pela comunicação social, sentir-se-á provavelmente assim, como um ser integrante de um país dentro de outro país, a tal ilha. E note-se que o “país”, ao caso, deve ser entendido como o país político, e não como a definição mais genérica de país(não é ao povo que se refere).

Nós conhecemos bem esta realidade e tudo aquilo que tem qualquer coisa de muitíssimo parecido com ela. Porque esse país sujo, desonesto, idiota, ignorante, que é o da política de direita, do capitalismo, dos seus agentes políticos e de outros servos, é aquele que nós combatemos. Porque esse país é aquele em que todos os debates(relações estreitas se quiserem chamar assim), seja lá onde forem, no PE, na AR, na autarquia, no local de trabalho, na Universidade, no café(e esta ordem não é hierárquica)… se tornam infrutíferos(o tal abismo cavado!). Porque, mais uma vez, somos de dois países diferentes. E até por isso, às vezes, também é possível que estes debates sejam cordiais(atenção, às vezes também isto se torna impossível!), porque criamos um debate “quase de nação para nação”, em que todos sabemos que o consenso, ou até uma simples consensualização, é praticamente impossível ou na melhor hipótese circunstancial e muitíssimo ténue, porque temos interesses de classe, representações políticas, valores éticos e morais diferentes.

E isto vai ser assim enquanto formos o que sempre fomos, nós e eles. Não porque alguém(alguém ou alguéns, no sentido colectivo ou singular, tanto faz ao caso) tenha nascido com alguma espécie de “graça” ética ou moral. Mas por força dos interesses de classe que convocam os seus próprios portadores para um país diverso, próprio, um país cujo objectivo final(económico, social, político) pressupõe sempre por um lado uns valores e por outro lado outros valores(os da outra classe!), e claro, a praxis, a acção diária e concreta, a expressão de luta(seja lá onde for e em que quadro seja), rumo ao objectivo final, obviamente também será norteada por valores determinados e não partilhados nem partilháveis(com a classe antagónica, claro!).

(…)Da exploração da classe operária, das massas trabalhadoras, dos povos subjugados – exploração imposta pela violência do aparelho do Estado, pela repressão, terror e a guerra – resultam os sentimentos e o comportamento moral da burguesia: individualismo e egoismo ferozes, indiferença pela sorte dos seres humanos, rapacidade, venalidade, completa falta de escrúpulos, redução a simples mercadorias dos valores culturais e espirituais. Com o aprofundamento da crise geral do capitalismo, a burguesia tende a abandonar quaisquer regras éticas e a tornar-se cada vez mais amoral. Sem preocupações morais, legitima ela própria tudo quanto lhe permite manter e intensificar a exploração dos trabalhadores e dos povos.

(…) Os ideias políticos influem nas representações e atitudes psicológicas e transplantam-se para os conceitos morais e destes para as atitudes e hábitos de procedimento. Da própria consciência dos objectivos da missão histórica do proletariado decorre uma nova concepção da vida e do homem, que se exprime numa nova ética.

A intransigência para com a exploração e os exploradores, para com a opressão e os opressores, para com qualquer forma de parasitismo, a indignação perante as injustiças, o reconhecimento nos outros seres humanos, independentemente da sua nacionalidade, raça ou sexo de direitos iguais aos próprios, convertem-se em conceitos morais, necessariamente associados aos objectivos políticos.(…)

Álvaro Cunhal in A superioridade moral dos comunistas, 1974

* Autor Convidado
Filipe Guerra