Crónicas de viagem – a milícia do autocarro 712

Nacional

Tudo o que vou relatar, aconteceu. Cheguei ao trabalho ainda me tremiam as mãos de incredulidade com o que tinha acabado de se passar.

Enquanto esperava o autocarro (mais uma vez, o 712), vi-o a parar em frente a uma escola. Começaram a sair pessoas a correr e uma delas parou ao meu lado e disse «Isto nunca me aconteceu…Meu deus, vai entrar? Cuidado com a criança». A criança estava ao meu lado num carrinho de bebé e outra pessoa disse o mesmo. Perguntei o que se passava e a senhora diz-me que estava um maluco à porrada no autocarro. Perguntei logo se já tinham chamado a polícia (parecia-me lógico, em vez de ser o motorista a parar o autocarro e a enfrentar a situação).

O autocarro pára à minha frente e vejo seis fiscais da Carris, 5 deles enormes (muito altos e dois deles altos e muito gordos). Vejo um jipe da GNR a chegar que passou a escoltar o autocarro. Entrei convencida que o «maluco» estaria dentro do autocarro, mas só via fiscais a barrar passagens. Pela conversa apercebi-me de que o «maluco» estaria numa paragem à frente por ter deixado a mochila dentro do autocarro.

Perguntei a um dos fiscais se os passageiros tinham sido agredidos, ao que me respondeu «Não, fomos nós». Ora, isto começou a parecer-me estranho. Chegados à paragem ouço «Não abras a porta!». Vejo uma pessoa acercar-se do autocarro. Um jovem alto bateu à porta e disse «Por favor devolvam-me a mochila, tenho que ir trabalhar». E seguiu-se este diálogo:

– Não damos mochila nenhuma. Identifique-se.
– Não me identifico nada, a não ser que a PSP me peça identificação. Devolvam-me a mochila.
– Não senhor. O senhor quer andar de autocarro tem que pagar.
– Ouça, já lhe disse que o meu passe tem dinheiro. Não tenho culpa que a máquina não esteja a funcionar.
– Identifique-se.
– Aliás, eu tentei sair do autocarro, este senhor é que me barrou a saída e agrediu-me. Dê-me a mochila que eu estou atrasado para o trabalho.
– Não damos mochila nenhuma.
– Com esta palhaçada estão a deixar aquelas pessoas todas [apontou para uma paragem cheia de gente] à vossa espera! Quero a minha mochila, vocês não podem fazer isto.
– Esteja calado!
– Eu não tenho dinheiro para pagar nenhuma multa, eu tinha dinheiro no passe, dê-me a minha mochila ou é preciso ser a mal?

[Estava um GNR e um PSP a assistir a tudo, sem se manifestarem]

Nisto, não consegui ficar calada ao ver seis fiscais a ameaçarem o homem e a ficarem com os seus pertences. Levanto-me do banco e dirijo-me à porta.

– Sou advogada. Vocês não podem fazer isto. Está ali a PSP e a GNR podem tomar conta da ocorrência e identificar este senhor. Têm que lhe dar a mochila.
– É o quê? Esteja mas é calada, não sabe nada.
– Os senhores não podem fazer isto, não são agentes da autoridade.
– Não sabe nada, vá mas é estudar.

Um dos fiscais vira-se para trás, empurra-me e grita «Saia daqui».

Insisto.

– Não são agentes da autoridade. Façam o favor de devolver a mochila.

O fiscal continua a empurrar-me em direcção às traseiras do autocarro e pergunto se ele me vai agredir ou expulsar.

Insisto.

– Não podem fazer isto.
– Não devolvemos nada, cale-se.

Nisto vou buscar a mochila. Sou agarrada no braço pelo mesmo fiscal que me projecta para o banco do lado. O senhor «maluco» entra no autocarro e pega na sua mochila e esse fiscal que me agarrou e o mais alto deles todos acercam-se dele para lhe bater e eu meto-me no meio. O GNR entra e diz «Calma, calma» e nada faz.

Peço ao fiscal que se identifique e digo-lhe que ele não pode agir assim. Ouço um «esteja calada» e o mais alto vocifera insultos. Um deles diz que por ser advogada não tenho autoridade nenhuma, ao que respondo que é verdade, somos dois. Mas como cidadã tenho o dever de defender pessoas quando vejo os seus direitos a serem violados.

Nisto saem todos do autocarro, que fecha as portas e arranca. Apanha as pessoas da paragem e ao virar-me para trás começo a ser violentamente insultada por todos os passageiros que permaneceram em silêncio todo o tempo.

«Não viu o que ele fez, estavam crianças! Não viu! Ele a atirar carrinhos do Lidl, se fosse consigo… Ainda o foi defender?»

Respondi que todos têm direitos e que os fiscais não podem identificar pessoas, ficar com os seus pertences e agredi-las.

– Podem, podem. Não viu o que ele fez! Estavam crianças!
– Minha senhora, estava a PSP e a GNR. Não podemos fazer justiça pelas próprias mãos.
– Ai não? Ele é que estava a fazer. E os fiscais têm razão. Ele merecia.
– Minha senhora, todos temos direitos. Mesmo os que cometem crimes.
– Você deve ser boa, deve.
– Nem imagina.

Pausa:
Portanto, um passageiro, que tinha o passe carregado e a máquina não obliterou, é abordado por seis fiscais. Explica. Querem passar-lhe multa. Pede para sair do autocarro. Bloqueiam-lhe a passagem e agridem-no. Responde com agressões. 6 fiscais agridem-no de volta. As pessoas saem do autocarro em pânico. As que ficam, acham que os fiscais têm razão, deviam ficar com a mochila dele e agredi-lo. As autoridades são chamadas, assistem e deixam que os fiscais continuem a exercer violentamente a sua inexistente autoridade.

Maluco! Maluco! Gritam as pessoas assustadas. Maluco!

Fim da pausa.

O senhor da frente disse-me que não respondesse a mais nada. Ouço uma passageira que tinha entrado a dizer:

– As pessoas não têm dinheiro para pagar o passe. Está muito caro. Ele já tinha saído do autocarro, não podem ficar com as coisas dele!

O senhor da frente diz-me: estão todos muito exaltados. Isto vai piorar. E os julgamentos são públicos. Sou advogado há 52 anos, sei bem o que está a sentir. Mas isto vai piorar. Por isso lhe disse que tivesse calma. Estava descorada. Logo hoje, que até tinha posto um bocadinho de blush.

É isto que esta política está a criar: desespero, violência, abusos de autoridade, linchamentos públicos. A razão deixa de existir. A solidariedade nem vê-la. O outro é sempre culpado. É sempre o que ameaça a nossa segurança, o nosso emprego, o nosso bem-estar. Não interessa que história há ali. Ganha o que tiver mais força. Sabendo disto não consigo deixar de sentir desprezo. Pela atitude dos fiscais e pela atitude das pessoas que prontamente me insultaram e pediam sangue. Pensei que talvez votassem na direita e achassem que assim é que se está bem. Que precisamos de intervenções musculadas contra os patifes que não têm dinheiro. Perguntava-me quando uma coisa destas iria acontecer. Foi hoje. Esperava, sinceramente, outra resposta por parte dos passageiros. Mas o capitalismo sabe demasiado bem o que faz. E as evidências estão aí.