De Coimbra a Pyongyang: 50 anos de Brigada Victor Jara

Nacional

Brigada, com intenção. Victor Jara, com admiração e saudade. Assim se apresenta uma das coisas mais bonitas que este país, em boa hora, pariu. Foi em 1975, no distrito de Coimbra, que surgiu — um ano após a Revolução de Abril — esta Brigada com intenção que, naqueles tempos, navegava cancioneiros portugueses e estrangeiros, explorando a expressão popular do nosso povo, as canções revolucionárias da América Latina ou ainda da Guerra Civil Espanhola e, entre comícios do MFA, do PCP ou nas conferências da Reforma Agrária, em muitos palcos pôs o seu luminoso pézinho. Foi nos tantos cantares do povo português que, como sabemos, mais se demoraram e demoram, na esteira de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, não lhes ficando atrás em grandeza. Pelo contrário. E meio século depois, cá estamos, tentando atravessar, eito fora, para o outro lado, subir o degrau que falta

É que ouvir a Brigada não é só ouvir música. É viajar, de janelas abertas e cabelos ao vento, por este país inteirinho, de Norte a Sul e do litoral ao interior, embarcar numa lanchinha rumo às ilhas e voltar revigorado. Este país, que tantas vezes nos enfurece e desilude, que se autodiminui e se reduz a torresmo, mas que possui uma herança cultural que ainda alimenta o presente e o futuro. Como o saudoso Giacometti, a Brigada, reinventando e agigantando a música tradicional portuguesa, lembra-nos de que o país onde nos calhou nascer não é só Calcitrin, Domingão, Tânia Laranjo e Big Brother. É uma cana verde desvairada, uma chamarrita atrevida e uma mão cheia de carvalhesas; é um diálogo entoado de Trás-os-Montes à Beira, um corridinho algarvio, um pregão a plenos pulmões e um adufe de pele de cabra; é o romper da bela aurora, o ritmo dos cavadores no plantio do bacelo e o leva-leva dos pescadores da sardinha. É uma polifonia com todos os sotaques e sem paralelo na Europa ocidental, um pedido de contas ao São Gonçalo de Amarante, os gaiteiros do nordeste e os tamborileiros da raia sul-alentejana. É uma canção de embalar e outra de amor, entre a sementeira e o verejo da azeitona, a ceifa e a espadelada do linho. Si los besos que te daba/ Si se volvieram lunares/ Tendrias en tu carita/ Más de trecientos millares.

Sabemos que já faz parte do charme deste rectângulo o quanto as coisas se atrasam antes de cá chegarem. Vai daí que nos acudiram os anjinhos sob a forma de um etnólogo corso que veio dar-nos as boas novas: o nosso cancioneiro tem outros desígnios além do embalo, do desafio, do passar do tempo. Ensinou-nos então que, pese embora o alargado esforço por parte do poder instituído de diluir, esconder, procurar extinguir, a solidariedade proletária que, desde tempos imemoriais, se firmou em verso, para que esta não mais se traduzisse na vida, o cancioneiro popular português é — pasme-se — rico em cantares de trabalho, essa tão bela forma de resistência e unidade, que traduz, e cito os anjinhos, as pulsações mais íntimas do homem rural. A Brigada sabe de que lado está: embala e inebria, mas também agita. Não há pedra que não bula.

Se outrora o folclore musical sofria, injustamente, dos pareceres pedantes e discriminatórios de alguns, associando a cultura popular à infantilidade e à inconsequência, ou procurando caracterizar as suas produções como inferiores, mais cedo do que tarde, o tabuleiro virou. O folclore musical renasceu inteiro, influenciando, presentemente, muitos jovens artistas. É através dessa tradição musical que fazemos as pazes com as raízes e melhor entendemos — e ouvimos — os solavancos da nossa História, da miscigenação com árabes e judeus à fixação de escravos africanos; das várias étnias reunidas sob a coroa de Castela à sedentarização de tribos ciganas; dos vastos movimentos diaspóricos à própria colonização. Também no canto somos árabes e judeus, ciganos e africanos, trabalhadores à jorna, maçadeiras, contrabandistas e romeiros. Sabemos agora a quem devemos a alegria de conhecer as nossas origens cantadas, por Né Ladeiras, no início, ou Catarina Moura, hoje, e por todos os recantos do mundo, sejam eles na Galiza, em Atenas, Roterdão, Caracas, Salvador da Bahia, Macau ou Pyongyang. E tantas vezes naquela vila de Amora. Ficava aqui a tarde inteira, mas quantos poderão afirmar que cantaram em português e dedilharam a campaniça na capital norte-coreana?

Isto tudo para dizer: vistam a saia de burel e a camisica de estopica, a Brigada Victor Jara faz 50 anos. É, pois, no dia 7 de Setembro, às 16h30, no Palco 25 de Abril da Festa do Avante!, que os celebraremos devidamente, cantando e dançando, num concerto que antecede o anual comício e onde, à Brigada, se juntará o colectivo feminino Segue-me à Capela, para um momento ímpar e, certamente, já histórico. Que se apronte Vale de Gouvinhas, o grande cerco está para breve. Sim, sim, Marião!

Brigada Victor Jara (com Zeca Medeiros) na Festa do Avante!, em 2021

“O folclore continuará a constituir o refúgio da criatividade popular, a imensa floresta onde se ocultam velhos segredos e se forjam novas esperanças.”
(Michel Giacometti)

1 Comment

  • Rui Curto

    4 Setembro, 2025 às

    Brigada Victor Jara e história

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