Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um breve contributo para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.
Índice
A – Apropriação Cultural
B – Bill Gates
C – Colaborador
D – Democracia e Ditadura
E – Empregador
F – Flexibilidade
G – Género
H – Holodomor
I – Interseccionalidade
J – Judeu
K – Kim Jong-Un
L – Lugar de Fala
M – Materialismo e Idealismo
N – Natureza Humana
O – Operário
P – Prostituição
Q – Qanon
R – Raça
S – Socialismo
T – Teletrabalho
U – União Europeia
V – Voluntariado
W – Wuhan
X – X-pat
Y – Youtube
Z – Zelensky
Apropriação Cultural
Tudo é cultura e toda a cultura é apropriada, pelo que não pode nem deve ser considerada propriedade de ninguém. Não há culturas autênticas nem puras: esse é um mito da extrema-direita. Os portugueses são culturalmente berberes, árabes, fenícios, romanos, franceses, ingleses, visigóticos, gregos e bantus. O multi-culturalismo é, portanto, a antítese da apropriação cultural.
Claro que é ridículo quando um famoso de Hollywood se mascara de nativo americano. Claro que a indústria da moda insulta a humanidade com a tendência “refugee chic”. Mas o verdadeiro problema não é a insensibilidade ou a ignorância da Adele ou da Katy Perry. O debate sobre a apropriação cultural redunda, quase sempre, numa discussão inócua, o que é que os brancos não deviam fazer, quando a discussão que importa não tem a ver com os comportamentos individuais, mas com as condições e os meios na raiz dessas desigualdades. Estes são meros sintomas de uma dinâmica de poder político e económico que cilindra culturas periféricas para depois as reciclar como caricaturas de si mesmas para consumo na metrópole. Mas o que interessa não é se os brancos ricos gostam de música negra ou se os indianos usam penteados jamaicanos. O que nos deve preocupar é que o imperialismo retira aos jamaicanos os meios culturais, sociais e económicos para afirmarem a sua cultura em condições de igualdade com os europeus.
O problema é que a hegemonia cultural do capitalismo transforma a alma da cultura dos povos em mercadorias sem alma. E isso não se combate com o fechamento das culturas em redomas de pureza étnica, evitando comer comida japonesa ou policiando a roupa e a linguagem uns dos outros. É preciso combater a globalização do capitalismo e do mercado com a globalização do socialismo, da partilha, da compreensão e da solidariedade.
Bill Gates
Talvez por usarmos os seus produtos todos os dias, a canonização de Bill Gates como paradigma do capitalista empreendedor que merece ser bilionário pode parecer inquestionável. Afinal, se ele criou a Microsoft, porque é que a Microsoft não pode ser dele? Mais! Sem a promessa de um dia ser muito rico, provavelmente Bill Gates não teria criado nada e estaríamos agora ainda a usar máquinas de escrever.
Estas lendas ignoram as condições financeiras, sociais e educacionais de que, neste caso, Bill Gates precisou para poder criar a Microsoft: os pais de Bill Gates eram milionários e isso não é um pormenor. Bill Gates cresceu com acesso às melhores escolas, a crédito bancário, aos contactos certos e, sobretudo, a um colchão financeiro que lhe permitiu arriscar sem correr riscos. Sim, parece uma contradição e é mesmo: em nenhuma das suas grandes apostas, Bill Gates alguma correu o risco de perder a casa.
As “invenções” de Gates não são, sequer, totalmente suas. Como todas as invenções, só são possíveis em sociedade e graças às contribuições científicas e tecnológicas de centenas de outros inventores, mas também graças a todos os que lhe garantiram o funcionamento de estradas, canalizações, recolha de lixo, explorações agrícolas, construção civil, saúde, etc. Por outras palavras, Bill Gates só pôde dedicar-se à investigação porque não teve de se dedicar a construir as suas próprias cadeiras e a ordenhar vacas para fazer o seu próprio queijo. Se uma criação só é possível socialmente, os seus benefícios devem ser socializados.
Independentemente do mérito da invenção, que deve ser justamente recompensada, nada justifica uma renda vitalícia de milhares de biliões de dólares que não incentiva ninguém a continuar a criar.
O capitalismo tornou-se no principal obstáculo ao progresso tecnológico e científico da humanidade: quantos potenciais génios não têm o tempo, os meios ou as oportunidades para estudar, inventar e criar? Quantas ideias inovadoras não passam do papel por não conseguirem acesso a crédito justo? Quantas patentes são roubadas pelos monopolistas? Quantas descobertas são compradas e enfiadas numa gaveta porque reduziriam as taxas de lucro de qualquer empresa obsoleta? Quem aguenta os primeiros anos de prejuízos de uma nova empresa a competir contra gigantes multinacionais?
Colaborador
Se “trabalhador” quisesse dizer a mesma coisa que “colaborador” não tinham inventado esta última palavra. Não há “código da colaboração”, “horário de colaboração”, “Ministério da Colaboração” nem querem que “colaboremos mais horas” porque não há colaboração nenhuma. Há pessoas que vendem a sua força de trabalho e pessoas que a compram por um valor. Por isso, faz tanto sentido chamar colaborador a um trabalhador como ao cliente de uma loja. Se patrão e trabalhador colaborassem verdadeiramente, os lucros seriam colaborativamente distribuídos.
A palavra colaborador foi inventada pelo patronato para convencer os trabalhadores de que os interesses de quem trabalha e de quem explora são os mesmos e assim anular a necessidade de lutas, sindicatos e consciência de classe.
Democracia e Ditadura
A democracia, na sua raiz etimológica, refere-se simplesmente ao “poder do povo”. Os que, nos dias que correm, usam a palavra como sinónimo de capitalismo não estão interessados no poder, participação e decisão do povo. A sua única preocupação é a legitimação do poder da classe dominante por via de eleições.
A democracia burguesa é, por natureza, simbólica e formal. Para sê-lo verdadeiramente, a democracia exige a ausência de todas as formas de opressão e o acesso igual condições políticas, materiais, financeiras, culturais e educativas. Sem isso, a “democracia” será sempre juniores a competir contra sériores, independentemente do árbitro e das regras. Da mesma forma que não há democracia sem educação, não há democracia quando a comunicação social é controlada por um dos lados, nem quando os patrões partem para as eleições com meios infinitamente superiores aos dos trabalhadores.
Democracia não é só poder votar: é o povo efectivamente participar e decidir sobre as suas vidas em condições de liberdade e igualdade. Ninguém se pode dedicar à participação política quando trabalha 10 horas por dia ou quando tem medo de ser despedido se o patrão não gostar das suas opiniões. Da mesma forma, ninguém pode ter opiniões livres de manipulação numa sociedade em que a educação e a cultura são privilégio dos ricos. Para a democracia sê-lo, é preciso democratizar tudo: as decisões nas empresas, o acesso à cultura e ao lazer, a saúde e o ensino superior.
Por contraste, a democracia burguesa e liberal tem por pré-condição a negação da democracia real: o povo não pode, nunca, deter o poder. Em todos os lugares do mundo em que, por acidente ou mérito, os povos alguma vez conquistaram eleitoralmente o poder às classes privilegiadas, estas nunca hesitaram em carregar no botão de emergência para chamar o exército, os golpistas, ou os EUA.
A verdade é que todos os Estados são formas de ditadura de uma classe sobre outra classe. Historicamente, essas ditaduras são mais ou menos democráticas de acordo com características históricas e culturais de cada povo, mas, principalmente, com a resistência da classe que não detém o poder.
Neste sentido, a expressão “ditadura do proletariado” não significa qualquer particular forma de ditadura, mas apenas o facto de uma classe (a dos trabalhadores) dominar outra classe (a burguesia). Em súmula, a ditadura do proletariado é até compatível com eleições multipartidárias, mas a democracia burguesa não é compatível com o poder do povo.
Empregador
Ao substituir “patrão” por “empregador”, o capital pretende mais do que esconder o conflito entre as classes e diluir a carga histórica e política das palavras: o principal propósito aqui é mostrar a exploração como uma inevitabilidade económica. “Se os empregadores não criassem empregos, não havia trabalhadores” é a conclusão a que chega quem aceitar este termo.
A realidade, porém, é inversa: é possível haver trabalho sem patrões, mas não é possível haver patrões sem trabalhadores. A história está repleta de exemplos bem sucedidos de sociedades, mais ou menos desenvolvidas, de milhões de trabalhadores a trabalhar sem patrões. Para o trabalho ser possível são necessários meios de produção, trabalhadores e organização, que toma sempre as formas mais convenientes à classe dominante.
Gestores, contabilistas, economistas e técnicos de recursos humanos são, todos eles, trabalhadores. A propriedade privada dos meios de produção significa que os trabalhadores vêem a riqueza que criam ser apropriada pelo titular improdutivo da propriedade, o patrão. Como os seus interesses são privados, o que convém ao patrão é frequentemente contrário ao que convém à empresa, aos trabalhadores, ao país e ao progresso. Por vezes, é mais lucrativo para o patrão vender uma fábrica viável a um investidor estrangeiro que a vai encerrar. Por vezes, é mais lucrativo não cultivar terras, falir um banco ou despejar leite no mar. Se empregar pessoas determinasse o que fazem os “empregadores”, eles abdicariam dos seus lucros para empregar mais pessoas, o que reduziria a taxa de desemprego e ainda nos permitiria a todos trabalhar menos horas.
Flexibilidade
Flexibilidade é o termo que, no linguajar dos capitalistas, designa a disponibilidade dos trabalhadores para serem mais explorados.
Do lado dos trabalhadores, a flexibilidade vai numa só direcção: estar ainda mais disponível para trabalhar ainda mais horas e assumir ainda mais tarefas. Os patrões que enchem a boca com a flexibilidade dos trabalhadores são inflexíveis em relação aos seus lucros, a aumentos salariais, a reconhecer direitos a quem trabalha e a reduzir os horários de trabalho.
À capacidade dos trabalhadores de suportarem toda essa flexibilidade, os patrões chamam resiliência.
Género
O género é o conjunto das expectativas sociais que, em cada momento histórico, os sistemas de exploração dominantes atribuem ao sexo em função das suas necessidades políticas e económicas, transformadas em normas psicossociais sobre como se deve comportar e expressar, respectivamente, uma mulher ou um homem. Historicamente, essas expectativas constroem-se como cofragens de identidades e de expressões performativas de grande profundidade cultural e que, consciente ou inconscientemente, em maior ou menor grau, todos reproduzimos. ao É contraproducente para o progresso considerar que a sensibilidade é uma característica feminina ou que a assertividade é condão dos homens. Uma mulher, independentemente da sua orientação sexual, pode ser forte, assertiva, agressiva e insensível sem ter de se identificar como um homem. Da mesma forma, um homem pode ser homossexual, usar saia, e ser um homem.
Há que lutar contra todas as discriminações e em direcção a um futuro pós-género, não em direcção à perpetuação dos estereótipos. Esse é, contudo, um objectivo ainda distante que não deve fazer perder de vista a necessidade imediata de dar todo o apoio às pessoas que sofrem por não se poderem expressar livremente ou que são discriminadas ao fazerem-no. Ainda assim, ser homem ou ser mulher não devia querer dizer mais do que o sexo com que se nasce e que pode ser alterado hormonal e morfologicamente, mas não biologicamente. Explicamos porquê: o “sexo com que se nasce” não é uma atribuição. É uma constatação objetiva de uma característica material. Uma pessoa que “mude de sexo” deve ter liberdade e apoio para fazê-lo, mas nunca vai ter cancro da próstata ou do colo do útero.
A questão da mudança de sexo assenta no principio subjectivo de que o sexo com que se nasce, e consequentemente o género atribuído pela sociedade, não está alinhado com o “género interior”. Mas a “identidade de género” não é algo com que se nasce, (o género não é natural) mas sim algo que se cria e desenvolve. Há que admitir, portanto, a possibilidade de a disforia e a sensação de estar “no corpo errado” estar associada à insistência das sociedades que garantem a algumas pessoas que o seu comportamento e a sua personalidade estão errados para o seu sexo. É natural que um homem com uma personalidade com características tradicionalmente atribuídas a mulheres, ou uma mulher com características tradicionalmente atribuídas a um homem, se sinta “no corpo errado”, o que gera frequentemente um sofrimento atroz.
Os que pretendem que a identificação como “homem” ou “mulher” está desligada das condições históricas, políticas e sociais e que nada tem a ver com o corpo, cultivam uma visão idealista do mundo em que o “eu” é independente da matéria: um retorno à cosmologia dualista da “alma” separada (ou mesmo oposta) à “prisão do corpo”. Esta lógica pós-modernista e pós-estruturalista prende o ser humano no labirinto da identidade individual em vez de procurar a libertação das amarras de um sistema inerentemente opressor. Em última análise, levando esta doutrina aos seus limites lógicos, um banqueiro sueco poderia identificar-se como um aborígene australiano. E a verdade é que podia, mas isso não aproximaria a humanidade do progresso, porque nenhum estereótipo liberta.
Holodomor
A ideia do genocídio do povo ucraniano através de uma grande fome provocada intencionalmente pela URSS nasceu como uma peça de propaganda nazi, cresceu para ser um dogma da direita neoliberal e envelheceu para não ser mais que uma piada de historiadores.
A fraude do Holodomor aceita acriticamente as fontes recolhidas pelas máquinas de propaganda de Goebbels, Innitzer e Hearst sobre o «o terror do judeu comunista» e ignora toda a produção historiográfica que aponta num sentido contrário. A título de exemplo, os crentes do Holodomor recusam-se a comentar a extensa evidência científica sobre as causas naturais e económicas da fome que, em 32, devastou não só a Ucrânia, como também a Rússia.
A própria palavra denuncia ao que vinha a direita nacionalista que inventou o conceito. Se ao fascismo atiravam o Holocausto, ao comunismo era preciso atirar um equivalente histórico, político e moral: o Holodomor. Daí que o número de vítimas do suposto genocídio tenha começado com 12 milhões (o dobro dos famosos 6 milhões de judeus mortos pelos nazis), para ser revisto pelos próprios historiadores que defendem a tese do genocídio para 10 e, actualmente, 3 milhões ou menos. O consenso entre os especialistas, mesmo dos historiadores burgueses, como Robert Conquest, Mark Tauger ou Arch Getty, é que a fome não foi intencional. Outros historiadores sérios como Douglas Tottle, que merece aqui destaque pela riqueza das fontes primárias em que se baseou para classificar o Holodomor como uma fraude, foram pura e simplesmente ostracizados.
Os crentes do Holodomor também se esquivam a explicar se as dezenas de fomes cíclicas que, desde há muitos séculos, devastavam a região da Ucrânia também eram genocídios ou porque razão a fome dos anos 30 foi a última.
A ideia de uma fome deliberadamente provocada por Stalin para erradicar o povo ucraniano é tão ilógica que contraria a própria lenda negra do líder soviético: se Stalin, para se agarrar ao poder, precisava de colectivizações forçadas em tempo recorde porque haveria, ao mesmo tempo, de incendiar o próprio silo?
Os historiadores sérios e baseados em evidência, independentemente das matizes ideológicas, têm hoje menos certezas na hora de apontar o dedo a um genocídio. O Holodomor ficará para a história como um instrumento ideológico das transformações capitalistas dos anos 90.
Interseccionalidade
Interseccionalidade é a teoria idealista segundo a qual a expressão social do sujeito resulta do cruzamento nele de um conjunto de vectores de privilégio e opressão. É errada por considerar que a expressão social do indivíduo se resume ao somatório das características que a sociedade lê nele e por não compreender que um constructo social só adquire materialidade quando projectada sobre algo com natureza material, i.e., a ideia de negritude só se torna um vector de opressão quando projectada sobre o proletário negro.
A teoria da interseccionalidade propõe a criação de categorias autónomas para cada combinação de opressões sobrepostas. Kimberlé Crenshaw, que contribuiu decisivamente para cunhar o termo, observou como os juízes dos EUA penalizavam desproporcionalmente as mulheres negras homossexuais, apesar da existência leis que protegem respectivamente mulheres, negros e homossexuais. Crenshaw atribui o problema à falta de categorias que permitam à sociedade compreender a sobreposição hierárquica de diferentes opressões. Ou seja, se os juízes dos EUA conhecessem a categoria de «mulher negra homossexual», não julgariam os resultados dessas opressões separadamente e, por conseguinte, seriam mais justos.
Embora todos concordemos que estas formas de discriminação são reais, o que importa não é categorizar as opressões, mas derrotá-las. Nenhuma opressão é o resultado de falta de categorias, mas de interesses materiais, pelo que é um idealismo estéril crer que mudar o discurso muda a realidade. Reside aqui a grande fraqueza da interseccionalidade: nunca ataca a base social e económica das diferentes opressões. Pelo contrário, a teoria da interseccionalidade aponta a reprodução da injustiça às relações interpessoais, pelo que coloca sempre o ênfase nas experiências individuais para travar a batalha no campo das ideias e da linguagem.
Muitas vezes, os proponentes da perspectiva pós-moderna da interseccionalidade falam em «opressões estruturais», mas referem-se às crenças ideológicas sobre as quais assentam noções de poder e superioridade que causam opressão. Na realidade, quem domina a fornalha da realidade material é quem domina as mudanças da linguagem e do pensamento.
Finalmente, o problema da crença em opressões sobrepostas é que coloca os brancos acima dos negros, os homens acima das mulheres e as pessoas sem deficiência acima das pessoas com deficiência, criando uma pirâmide segundo a qual nos oprimimos uns aos outros porque algumas pessoas têm mais “privilégios” do que outras. Trata-se de uma ideia falsa e perigosa, que confunde direitos com privilégios e aliados com inimigos: quem tem privilégios são os capitalistas. Embora alguns trabalhadores tenham mais direitos do que outros, têm exactamente o mesmo interesse em alargá-los a toda a classe produtiva através da unidade e da solidariedade.
Judeu
Um judeu é alguém que tem no judaísmo a sua religião. Em torno do judaísmo, como em torno de todas as religiões, gerou-se uma cultura riquíssima que merece ser celebrada e preservada. Ainda assim, o “povo judeu”, enquanto entidade étnico-nacional, com uma história e uma cultura vinculada a um lugar, é uma invenção nacionalista do século XIX baseada no mito de um exílio forçado. Como o historiador israelita Shlomo Sand demonstrou no livro “Como o Povo Judeu foi Inventado”, o judaísmo já foi uma religião proselitista que se espalhou entre povos tão diferentes e longínquos como berberes, himiaritas e cázaros. A ideia de um “povo judeu” uno e minimamente coeso só é possível negando as diferenças (veja-se como Israel trata os judeus etíopes) e aceitando como realidade histórica a chamada “diáspora judaica”: uma lenda moderna sobre um retorno à “idade dourada” tão bem alicerçada em fontes primárias como a existência do povo ariano.
No seu ensaio sobre “A Questão Judaica”, Marx não só era claro sobre a falsidade histórica da identificação dos judeus com o “povo hebreu” como condenava a tentativa de o inventar: “opondo à nacionalidade real a sua nacionalidade quimérica e à lei real a sua lei ilusória, crendo-se no direito de manter-se à margem da humanidade, a não participar, por princípio, do movimento histórico, e a aferrar-se à esperança de um futuro que nada tem a ver com o futuro geral do homem, considerando-se membro do povo hebraico, que diz ser escolhido. A título de que, então, aspirais à emancipação? Em virtude de vossa religião?”.
Ponto de ordem à mesa: não faz qualquer sentido culpar os judeus pelo que fazem os israelitas; o povo semita não existe, o povo hebreu também não (do ponto de vista linguístico, o árabe é tão semita como o hebraico) e ser anti-sionista não é ser anti-semita. Israel é um Estado colonial baseado no sionismo, uma ideologia nascida entre as comunidades ashkenazi do centro e leste da Europa que advoga a construção de um etno-estado judaico como solução para os séculos de perseguições e discriminações. Não se trata, contudo, de uma ideologia consensual no universo do judaísmo. Nunca o foi, mesmo entre as comunidades judaicas europeias que a inventaram. Note-se, a este propósito, que um dos Três Juramentos talmúdicos proíbe a construção do Estado de Israel. A maioria dos israelitas não é árabe, nem hebraica, nem semita: é europeia. Uma maioria europeia instrumentalizada pela ideia de “povo judeu” e pela recuperação de uma suposta terra prometida por Deus que não se pode levar a cabo sem uma limpeza étnica da população (ou “transferência”) da população residente.
A ambiguidade do termo “povo” (e os alentejanos, são um povo?), somada ao forte sentimento de identidade e comunidade que resultou da segregação, perseguição e discriminação a que, ao longo dos séculos, os judeus foram submetidos, favoreceu a emergência da ideia nacional de um “povo judeu” como um sujeito separado do povo português ou francês e titular do direito de auto-determinação. Por outras palavras, se o “povo judeu” existe terá direito à auto-determinação e a criar um Estado, o que daria ao “povo hindu” e ao “povo muçulmano” o mesmo direito.
No contexto actual, a afirmação do “povo judeu” serve de instrumento sionista para justificar os crimes contra a humanidade de um Estado colonial, confessional e genocida que serve a agenda do imperialismo.
Kim Jong-Un
A Coreia do Norte é tão inevitável numa entrevista a um comunista como o sol é na madrugada. Afinal, se esse regime é comunista, importa saber se os comunistas portugueses se revêem nele, certo? Errado. Isso seria o mesmo que perguntar a António Costa se se identifica com qualquer outro regime capitalista do globo, como Myanmar, a Arábia Saudita ou a Colômbia.
Quem quer construir o socialismo em Portugal responde sobre a Coreia do Norte o mesmo que quem constrói o capitalismo em Portugal responderia sobre outros Estados capitalistas do mundo: somos diferentes, mas não nos imiscuímos nos assuntos internos de outros povos.
Nos nossos media, a Coreia do Norte não é um Estado socialista, mas o reino de fantasia onde reina um vilão dos filmes de James Bond. A julgar pelas notícias, os coreanos do Norte acreditam em unicórnios, são obrigados a usar o penteado de Kim Jong-Un, os opositores são devorados por cães, os líderes podem teletransportar-se e o povo tem de comer neve para sobreviver.
A narrativa dominante sobre a Coreia do Norte foi tão poluída por transcrições acríticas, tão fantásticas como caricaturais, de duvidosos dissidentes e jornais satíricos, que questionar a fiabilidade das notícias dos “media sul coreanos” sobre os executados com mísseis antiaéreos equivale a ser um fã da família Kim, mesmo quando os alegados executados depois aparecem ressuscitados. Ainda assim, ser contra a invasão da Coreia e o sufocamento do seu povo não é propriamente o mesmo que querer copiar o seu sistema político e colá-lo em Portugal.
A realidade da Coreia do Norte é bem mais complexa: depois do longo crime contra a humanidade que foi a ocupação japonesa, os EUA vieram largar 635 000 toneladas de bombas sobre o território, matando cerca de 1,5 milhões de pessoas, 15% da população, e destruindo todos os edifícios do país. Desde então, a nação tem estado submetida a uma gigantesca pressão militar, política e económica que contribuiu muito para o actual isolamento. Querer comparar os comunistas portugueses aos socialistas coreanos é tão imbecil como comparar esta história da Coreia à de Portugal.
Quão racista é preciso ser para achar que o povo coreano é tão acéfalo que se deixa oprimir há 73 anos sem levantamentos, insurreições nem manifestações prontamente fuziladas? Quão arrogante é preciso ser para acreditar que é possível manter de pé, durante 73 anos, um Estado na mira dos EUA e da NATO sem qualquer apoio popular e só pela repressão?
Lugar de Fala
O conceito de lugar de fala parte de duas premissas correctas para chegar a uma conclusão errada. Por um lado, é necessário e desejável que os actores sociais se representem a si mesmos: é claro que devem ser as mulheres a encabeçar as suas próprias lutas; ninguém duvida de que não há ninguém melhor que um operário para falar sobre a luta dos operários e é óbvio que os homossexuais não precisam que os heterossexuais sejam os porta-vozes das suas reivindicações. Por outro lado, também é certo que a sociedade de classes atribui às “verdades” de diferentes actores sociais valores distintos.
Através da lente pós-estruturalista, estas duas constatações levam à conclusão de que, por exemplo, quando um homem fala sobre a luta das mulheres está a reproduzir a sua posição de poder numa performance que perpetua a secundarização da mulher. Por esta lógica, os brancos não deveriam combater o racismo, os homens não poderiam combater o machismo e os portugueses não deviam falar sobre os palestinos. Esta lógica (oposta ao universalismo do marxismo, que convoca todos os trabalhadores do mundo para uma união em torno da classe que ultrapasse todas as diferenças) proíbe a solidariedade e fecha cada luta numa redoma identitária desligada da realidade económica e social.
Por outro lado, o lugar de fala representa um gigantesco passo atrás na tradição racionalista da esquerda: em vez de uma considerarmos uma ideia correcta ou errada a partir da evidência empírica, da argumentação e de critérios logicamente demonstráveis, com o lugar de fala não precisamos sequer de considerar a ideia, bastando apenas catalogar e desautorizar o seu portador em função de características suas, uma falácia antiga também conhecida como ad hominem. Assim, Engels, que era capitalista e alemão, não teria legitimidade para “falar” sobre a classe operária inglesa e deveríamos reconhecer a Luc Mombito, o melhor amigo de André Ventura, mais legitimidade para falar sobre a luta anti-racista que a Jerónimo de Sousa.
Materialismo e Idealismo
O idealismo é o processo de pensamento assente no primado das ideias sobre a natureza. Ao contrário dos materialistas, que vêem na natureza a base sem a qual as ideias não existem (não há ideias sem cérebro, não há cérebro sem células, não há células sem átomos, não há átomos sem matéria), os idealistas garantem que a verdade não existe a não ser dentro dos nossos cérebros pelo que as abstracções só se podem entender em função de outras abstracções. É desta forma que os idealistas desligam a verdade da realidade social, histórica e económica, recorrendo ao espírito, à moral e aos impulsos para explicar o mundo. Os materialistas, em sentido inverso, procuram na natureza, nas relações económicas e no contexto social a explicação para a cultura, para a religião e para a ideologia.
Os marxistas também são materialistas, mas distinguem-se por aplicarem a dialéctica ao primado da matéria sobre as ideias. Ou seja, aceitam que não há ideias sem matéria e que há matéria sem ideias, mas reconhecem que as ideias geradas pela matéria têm o potencial de moldá-la e transformá-la.
Natureza Humana
Uma das vacas sagradas da ideologia dominante é a ideia de que a humanidade está condenada pela sua própria natureza a ser para sempre como já é hoje: egoísta e individualista, pelo que qualquer projecto de sociedade assente noutros valores e contrária a estas características estaria, portanto, condenada ao fracasso.
Curiosamente, a única prova de que essas características são, desde sempre, a natureza geral de todos é a observação, nos nossos dias, das características particulares de alguns. A história da humanidade é rica em exemplos de etapas históricas e culturas em que o Homem não era tão egoísta e individualista: é seguro afirmar que na Idade Média o camponês comum era menos individualista e que a maioria das sociedades primitivas de caçadores-recolectores é menos egoísta. Se concordamos que os andamaneses ou os adivasi, que nem sequer conhecem a propriedade privada, são tão humanos como nós, a explicação para o individualismo e para o egoísmo dos nossos tempos não pode residir na nossa natureza, mas nas nossas circunstâncias históricas sociais e económicas.
Tirando impulsos básicos de sobrevivência de caçadores-recolectores como beber água, comer, dormir, conviver, etc. a “natureza humana” é adaptar-se às circunstâncias materiais. Se a sociedade capitalista premeia e encoraja o individualismo e o egoísmo, é natural que essas características estejam muito disseminadas: a cultura dominante é sempre, afinal, a cultura da classe dominante. Inversamente, uma sociedade mais livre e igualitária, sem exploração do Homem pelo Homem, que premiasse a entre-ajuda e fomentasse o espírito comunitário, veria certamente a “nossa natureza” evoluir lentamente nessa direcção.
Operário
Já não há operários? Proletariado é uma categoria ultrapassada? Qual a diferença entre trabalhador, operário e proletário? A discussão é demasiado extensa e as categorias económicas que dela derivam exigiram muitas mais entradas de verbetes neste dicionário, mas eis as noções básicas:
O proletário moderno é todo o trabalhador que, não possuindo meios de produção, se vê obrigado a vender a sua força de trabalho. O dono de um pequeno café, por exemplo, pode trabalhar muitas horas por dia, mas não é um proletário. Esta diferença importa porque o proletário, seja ele produtivo (como uma cantora de ópera ou um mineiro, já que para Marx é irrelevante se o proletário produz mercadorias da fantasia ou do estômago) ou improdutivo (como um caixa de super-mercado ou um camionista) trabalha sempre mais do que o valor correspondente ao tempo de trabalho que exerce.
À riqueza excedente criada pelo proletário que termina nas mãos do capitalista chamamos mais-valia, e é nela que reside a maior contradição de classe da sociedade capitalista: o capitalista só pode existir esmagando o proletário (reflectindo a tendência para a queda da taxa de lucro) e o proletário só se pode libertar esmagando o capitalista.
O operário é o membro produtivo do proletariado que opera uma transformação material na mercadoria, alterando o seu valor de uso. Regressando ao conceito de mais-valia, o operário, enquanto classe, é o mais explorado de todos os proletários, independentemente do seu rendimento, porque o valor do excedente que lhe é expropriado só conhece os limites da tecnologia. Por ser simultaneamente o mais explorado e o mais próximo do coração material do capitalismo, a fábrica, o operário está em melhores condições para assumir o papel de vanguarda na luta política.
O trabalhador existirá sempre porque o trabalho é intrínseco à humanidade enquanto processo criativo e metabolismo do ser humano com a natureza, mas o mesmo não se pode dizer da sua actual forma assalariada assente na exploração. Portanto, o proletário moderno continuará a existir enquanto as classes sociais existirem e não estará desactualizado até a humanidade superar o modo de produção capitalista. Já o operário continuará a existir enquanto o capitalismo não puder ou não quiser enfrentar os problemas económicos, políticos e sociais que adviriam da automação total.
Prostituição
A prostituição não é trabalho: um trabalhador vende a sua força de trabalho e não o seu corpo. Uma mulher prostituída pode até estar inconsciente e ainda assim ser vendida porque aquilo que é comprado é o acesso ao seu corpo, que é usado como um objecto. Ora, ser usado não é trabalhar e os objectos não trabalham. Uma demonstração prática desta tese é que, ao contrário de qualquer outro trabalho, a mulher prostituída não ganha valor à medida que ganha experiência: os consumidores de prostituição preferem usar as mulheres e as meninas mais novas e menos experientes por estarem, tal como objectos, “menos usadas”. A prostituição não pode ser sequer considerada uma profissão (é falso que seja “a mais antiga”) porque, para realmente sê-lo, teria de ser compatível com a segurança e a dignidade das “profissionais”. Quando a taxa de mortalidade é 40 vezes superior à média, quando 80% das mulheres prostituídas é espancada regularmente, 92% quer sair, 68% apresenta sintomas de stress pós-traumático e 22% pensa em suicidar-se, não se trata de uma “profissão”, mas de um inferno.
E não se trata de falta de regulamentação. Os países que ensaiaram tentativas de regulamentação da prostituição, como a Holanda, assistiram a um aumento de todos os problemas sentidos pelas mulheres prostituídas: mais tráfico, mais violência, mais exploração sexual. Mais, ao contrário do que dizem os defensores da “regulamentação”, a prostituição já é legal em Portugal: qualquer pessoa pode, legalmente, prostituir-se, preencher um recibo verde e fazer descontos. O que é ilegal em Portugal é o proxenetismo: viver à custa da exploração sexual de outros seres humanos. Esse é o objectivo de classe de quem defende a “regulamentação da profissão”: legalizar os chulos.
A prostituição também não tem nada a ver com liberdade sexual nem com opções individuais. Se pudessem, algumas pessoas decidiriam trabalhar por 200 euros por mês, mas o Estado obriga-as a ganhar o salário mínimo. Alguns trabalhadores abdicariam livremente das férias, mas a lei proíbe-os de renunciar a esse direito. Se pudessem, algumas pessoas provavelmente gostariam de poder vender um órgão para comprar um carro novo, mas a sociedade não aceita que órgãos humanos se possam comprar e vender. É que em todos estes casos, a sociedade considera que a “liberdade” de uma minoria privilegiada não pode comprometer os direitos das pessoas mais vulneráveis da sociedade, que se veriam obrigadas, pela falta de alternativas ou pelas circunstâncias, a vender órgãos, a trabalhar por menos do que o salário mínimo ou a abdicar das férias, se essas “opções” lhes fossem apresentadas. Para a esmagadora maioria, a prostituição não corresponde a uma opção, mas à falta dela. Por outras palavras, quando a alternativa é a pobreza e o desemprego, vender o próprio corpo não é uma “preferência”: é uma chantagem.
Porque o consentimento sexual (escolher livremente quando, como e com quem) não pode ser comprado, a prostituição é sempre uma violação compensada com dinheiro. Se a verdadeira liberdade sexual é o gozo pleno da sexualidade em condições de liberdade e de igualdade, a compra de sexo é a negação do desejo do outro a partir de uma posição de poder sempre assente na desigualdade. Como denuncia João P. Martins, para algumas pessoas é chocante que mulheres refugiadas estejam a ser obrigadas a prostituir-se em troca de comida, mas não é tão chocante que o façam a troco de dinheiro, “porque assim estariam só a trabalhar”. Ainda assim, mesmo os que alvitram que a prostituição é uma “profissão normal”, não desejam essa profissão para as suas mães nem para as suas filhas, porque no fundo sabem que há nela algo de violento e desumanizador.
A prostituição não é só um problema das mulheres prostituídas: também perpetua uma visão reaccionária da sexualidade que afecta homens e mulheres. A pergunta que importa fazer é, portanto: que sociedade queremos? Transformar os corpos das mulheres em objectos transaccionáveis não é progresso. Querer um mundo em que o dinheiro tudo compra e em que por dinheiro tudo se vende, até mesmo a sexualidade, a intimidade e o consentimento, não é a causa do progresso humano.
Qanon
O Libelo de Sangue foi uma teoria da conspiração da Idade Média que acusava os judeus de raptarem crianças para lhes beberem o sangue. Improvavelmente, no ano do senhor de 2020, a velha lenda ressuscitou sob o rótulo de Pizzagate, desta vez incriminando a “elite globalista liberal” pelo rapto de crianças para abastecimento de rituais satânicos na cave de uma pizzaria de Washington onde ora tinham lugar abusos sexuais, ora se procedia à extracção do androcromo, uma espécie de elixir da eterna juventude presente no sangue das crianças. Eis a estância do Qanon, onde se levantam as pedras da história para destapar a ignorância e os vermes. É como se se tivesse definitivamente fechado o parêntese de Gutenberg que, propôs Sauerberg, ditasse o ocaso da era do monopólio do conhecimento mediado pela palavra escrita, convenientemente restringida à autoridade dos sábios e o regresso à oralidade das histórias contadas, não à volta da fogueira, mas no caos das redes sociais. Mas não é isso.
O Pizzagate é apenas uma entre muitas conspirações que fermentam sob o signo do QAnon, o misterioso oráculo dos segredos do Estado profundo que, infiltrado no Departamento de Energia dos EUA com o nível de acesso de segurança “Q”, revelaria as mais fabulosas profecias sobre o fim da ordem vigente. Desde seres humanos com ADN de serpente (que já levou um pai a matar os próprios filhos), ao regresso triunfante de Trump numa tempestade de execuções sumárias, ao negacionismo Covid anti-vacinas mais chalupa, o QAnon oferece explicações para tudo, até mesmo para o falhanço da própria futurologia. Mas o que verdadeiramente interessa é saber porque é que teorias marginais, sem qualquer fundamento nem provas, saltaram do esgoto do 4Chan para o palco principal da política mundial.
O QAnon, como qualquer outra teoria conspirativa sem quaisquer provas, não é só mais um exemplo de suspensão da razão: é um reflexo cultural da crise estrutural do capitalismo tardio, que já não se consegue explicar nem pensar; é a fast-food cognitiva com que os explorados foram alimentados e que parece poder organizar e explicar o caos em que se dissolve a mundividência de um sistema cada vez mais imprevisível.
Por outro lado, a Ocidente nada de novo: do ponto de vista epistemológico, nada separa um crente em Deus de um crente no QAnon, de um terraplanista ou de quem acha que o homem não foi à lua. Nem um nem outro precisam de evidência para acreditar (abençoados são os que crêem sem verem, dizia São Paulo); tanto um como outro são idealistas e contrários ao marxismo; tanto um como outro reinterpretam a teoria numa espiral auto-justificativa e dogmática que ora metaforiza a doutrina, ora lhe apõe emendas que acomodam os embates da realidade; tanto um como outro preservam a dominação da classe, aparentando questioná-la.
A internet desempenhou um papel importantíssimo no alargamento e na pulverização do idealismo para outras formas de dogma, fé e mentira, mas não inventou nenhuma delas.
Raça
Não há raças humanas, concordam os biólogos. “Raça” é uma categoria inventada a partir do séc. XVI pelo capitalismo embrionário para justificar o comércio de escravos. A escravatura do mundo antigo, por exemplo, não tinha qualquer relação com a cor da pele. Todo o significado político e social da palavra “raça” advém, portanto, das terríveis consequências históricas que essa ficção legitimou: o racismo. Por outras palavras, a ideia de raça só existe por causa do racismo.
Já há um século, W.E.B. Du Bois, vulto maior do movimento anti-racista dos EUA, criticava a categorização biológica das diferenças sociais, históricas e culturais entre humanos. Para Du Bois, não é sequer possível definir o que é um “negro” ou um “branco”, mas sendo essas categorias impostas socialmente, elas acabam por ganhar um real significado cultural e político, pelo que podem ser necessárias à luta anti-racista.
O racismo não é, contudo, o mesmo que discriminação racial. Um negro pode dicriminar um branco pela sua cor da pele, mas não pode, mesmo que queira, ser racista. Racismo é a palavra que designa o sistema de exploração humana, historicamente construído ao longo de cinco séculos e o aparelho ideológico que o suporta. Esse sistema é inseparável de estruturas de poder e de formas de divisão do trabalho que não dependem de actos individuais. Ou seja, mesmo que amanhã não houvesse actos individuais de discriminação e ódio contra negros, a maioria das trabalhadoras das limpezas continuariam a ser negras e mal remuneradas.
O racismo é, historicamente, a aduela que suporta o arco do capitalismo, pelo que só a superação deste levará ao desaparecimento daquele.
Socialismo
O Chega está apostado em convencer-nos de que se o PS governa o país e se chama socialista, daí decorre que o actual estado de coisas também se chame “socialismo”. Isto é sensivelmente o mesmo que achar que os leões-marinhos são felinos, que os tubarões-martelo são ferramentas, que a Ursa Maior é um urso, que os cachorros quentes são cães ou que o NSDAP de Hitler também era socialista.
O PS meteu o socialismo na proverbial gaveta há muitos anos e o “socialismo democrático” de que contingentemente fala, é tão-só um capitalismo regulado. Apesar disso, tão depressa os fascistas dizem que vivemos num regime socialista como louvam o 25 de Novembro por nos ter livrado de um.
O socialismo é a etapa transitória entre o capitalismo e o comunismo. É a sociedade em que o poder político e os meios de produção estão maioritariamente nas mãos do proletariado, que deles se serve para melhorar a sua vida e combater a burguesia até à derradeira extinção das classes sociais.
Teletrabalho
Tal como todos os avanços técnicos e tecnológicos, o teletrabalho tanto pode servir para libertar como para oprimir. Como qualquer outro instrumento, o teletrabalho serve os interesses de quem o detém. Se, nalguns casos, o teletrabalho poderia evitar deslocações demoradas, caras e desnecessárias, a realidade demonstra que está a ser usado para aumentar a exploração e transferir para o trabalho despesas que, até aqui, eram responsabilidade do capital.
Não se trata unicamente do aumento dos horários de trabalho, como demonstram vários estudos, trata-se de ser o trabalhador a pagar pelo arrendamento do seu próprio local de trabalho que, para todos os efeitos legais, passa a ser a sua casa. Na mesma esteira, passa a ser o trabalhador o único responsável pelo pagamento da água e dos esgotos, da electricidade, da internet, do aquecimento, da alimentação, da limpeza e de todos os serviços necessários ao funcionamento da empresa. Ao não traçar valores mínimos nem obrigações legais, como o subsídio de refeição, a legislação recentemente aprovada na AR não responde a qualquer uma destas questões.
Ao isolá-los, o teletrabalho enfraquece a capacidade de reivindicação e de resistência dos trabalhadores. Ao interromper as interacções de quem partilha diariamente, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, os mesmos problemas e os mesmos interesses, o teletrabalho impede as solidariedades, quebra a confiança e limita a capacidade de organização ao mesmo tempo que dissolve a fronteira entre o tempo de trabalho e o tempo pessoal.
Apesar de tudo isto, o teletrabalho é sedutor para a maioria dos trabalhadores, porque promete mais tempo com a família, menos tempo nos transportes públicos ou no trânsito, menos despesas em combustíveis, mais conforto e até mais liberdade. O logro do capital consiste em oferecer a promessa destas aspirações sem ceder em horários de trabalho nem em remunerações, muito pelo contrário. Se o teletrabalho não transferisse despesas do capital para o trabalho nem permitisse explorar mais, os patrões não o desejariam. O teletrabalho deve, por isso, ser o resultado de uma opção dos trabalhadores e nunca um cenário absoluto.
União Europeia
Nem a União Europeia é a Europa nem sair da UE significa necessariamente cair no isolacionismo. A UE é um projecto essencialmente franco-alemão de assimilação política e económica de todo o continente em moldes capitalistas e imperialistas. À semelhança dos impérios romano, napoleónico ou nazi, a União Europeia tem inscrito no seu código genético uma matriz de interesses que não são comuns a todas as classes sociais nem a todas as nacionalidades da Europa.
Não foi por acidente que, desde a adesão à CEE, Portugal perdeu metade da frota pesqueira (hoje, Portugal, um dos países da Europa com a maior Zona Económica Exclusiva, importa mais de 70% do pescado que consume). Não foi por acidente que perdemos 700 mil hectares de produção agrícola, nem que o peso da indústria no PIB caiu para metade. Não é por acaso que a União Europeia patrocina a regressão de direitos sociais e as privatizações de serviços públicos ao mesmo tempo que condiciona as conquistas de quem trabalha e trava a reposição de direitos sociais. Ao invés das promessas de “convergência”, a UE afastou os países mais pobres dos mais ricos.
Esperar que a União Europeia possa ser amiga dos trabalhadores portugueses é o mesmo que esperar que a raposa possa ser amiga das galinhas.
Voluntariado
Fazer voluntariado é trabalhar gratuitamente. No contexto capitalista, todas as razões são boas para não pagar um salário: a falta de experiência de jovens desempregados e sem contactos no mundo do trabalho; a generosidade das boas pessoas que não se conformam em assistir impávidas ao sofrimento alheio; a ideia de que a cultura não é propriamente um sector profissional normal e que, por isso, é normal trabalhar de borla; a vontade de conhecer pessoas novas e de “crescer espiritualmente”; a autocongratulação moral e a necessidade de autopromoção ou, simplesmente, o preço exorbitante do bilhete de um festival.
De embrulhar prendas para o Continente a controlar portas no Rock in Rio; de pedir comida para os pobres à porta do Pingo Doce a picar bilhetes no DocLisboa; de escrever comunicados de imprensa para a Volvo Ocean Race a distribuir restos de comida na Refood, todas as actividades e profissões são “voluntarizáveis”.
Quando é caridade, o voluntariado não põe em causa a existência de injustiças e desigualdades e limita-se a geri-las; quando é cultural, o voluntariado não questiona a falta de financiamento e promove a precariedade e os baixos salários; quando é simplesmente comercial, o voluntariado rouba trabalho remunerado a quem dele precisa.
O voluntariado também contribui para cristalizar a tradição de inaugurar as relações laborais com trabalho não remunerado. O voluntariado pode ser o mecanismo através do qual o trabalhador pode demonstrar a proactividade, o esforço, o espírito de sacrifício e a iniciativa que um dia, com alguma sorte, poderão vir a conduzir a um trabalho remunerado.
O voluntariado não se confunde com os outros tipos de trabalho não remunerado como o trabalho associativo, a tarefa do militante ou o empenho do activista. O voluntariado não se confunde, sequer, com as rotinas de solidariedade organizada horizontalmente.
Na acepção neoliberal, o voluntariado é essencialmente a relação laboral entre patrão e trabalhador na qual o primeiro não paga ao segundo, mas nem todo o voluntariado se encaixa, felizmente, nesta cofragem. As diferenças entre um médico que parte para o Haiti para responder a uma catástrofe natural e um recém-licenciado em animação cultural que trabalha de borla num evento promocional do Continente são por demais óbvias: a emergência ou a normalidade; o interesse público ou o lucro privado; o genuíno altruísmo ou a escravatura encapotada.
Wuhan
Wuhan: o nome da cidade chinesa ficou inscrito na certidão de nascimento da COVID-19, uma certidão emitida pelo imperialismo ocidental e carimbada com o selo do racismo sinofóbico. O mito do “vírus chinês” cunhado por Trump é uma reedição do “perigo amarelo” do século XIX: mais uma vez, o chinês é apresentado como uma ameaça existencial ao mundo civilizado. Quer seja por comerem morcegos (nós comemos caracóis e tripas), quer seja pelo “regime totalitário” que confinou milhões de pessoas (mais tarde nós fizemos o mesmo), a China, qual judeu internacional, é o bode expiatório da pandemia global.
A maioria dos cientistas que hoje estuda a origem do SARS-CoV-2, incluindo a Organização Mundial de Saúde, aponta para a origem natural e zoonótica do vírus. A China, menos desenvolvida que a UE e os EUA, teve de lidar com um vírus novo sobre o qual não se sabia nada. Durante essas primeiras semanas de confusão e incógnita, foram cometidos erros pelos quais o governo da China pediu desculpa publicamente: é o caso Li Wenliang, o médico comunista admoestado pelas autoridades locais por ter avisado para a existência da epidemia. Postumamente, Li seria condecorado como “mártir”, a maior honra civil da República Popular da China.
Quando compreenderam o que enfrentavam, as autoridades chinesas não olharam a meios para deter o vírus. A China pôs a vida dos seus cidadãos acima do lucro: mais de 40 mil médicos foram enviados para a linha da frente; hospitais foram construídos do zero em poucos dias; o governo disponibilizou gratuitamente alimentos e produtos de primeira necessidade às populações confinadas; a indústria foi reorientada para a produção de máscaras e ventiladores. Os hospitais públicos chineses trataram 95 por cento dos pacientes com Covid. Alguns estudos sugerem que a resposta da China pode ter salvado mais de 10 milhões de vidas e nenhum outro Estado do mundo teve tanto êxito no combate à pandemia.
Sérvia. Filipinas. República Checa. Camboja. Itália. Rússia. Espanha. Portugal. Venezuela. Palestina. Libéria. França. Bélgica. Irão. Iraque. Vietname. Etiópia. Portugal. Estados Unidos da América. Todos os países desta lista, que não pretende ser exaustiva – são já mais de 90 os países apoiados – receberam nos últimos tempos apoio material e humano da China: ventiladores, fatos protetores, máscaras, medicamentos, médicos, plasma de doentes recuperados.
X-pat
Xpat, ou expatriado, designa uma pessoa “com sucesso” proveniente de um país dito “desenvolvido” que, muito glamorosamente, vai experienciar a vida que tinha, noutro país. Por ser rica e não gostar de ser confundida com trabalhadores pobres e não-brancos, essa pessoa não gosta de se assumir como “imigrante”, pelo que se auto-intitula expatriada.
Não há “expatriados cabo-verdianos em Lisboa” – há imigrantes. Tão pouco há “imigrantes ingleses em Portugal” – há expatriados. Expatriado está para emigrante como colaborador está para trabalhador. É uma expressão racista, sem qualquer significado legal e que dilui a solidariedade internacionalista de classe.
Youtube
Corriam os idos de 2006 quando a revista Time convidou o público, investido digitalmente com o poder da web, a decidir democraticamente quem seria a “pessoa do ano”. Dada voz à internet, a internet falou e elegeu, com 35% dos votos, Hugo Chávez. Mas, em vez do democraticamente eleito Hugo Chávez, nesse ano, a pessoa do ano foste «TU». O florão numa janela de Youtube, num ecrã de iMac, na capa da revista, vinha acompanhada pela epígrafe «Sim, tu, tu controlas a idade da informação. Bem-vindo ao teu mundo». Estava dado o mote para a democracia na era das redes sociais.
As redes sociais e, num sentido mais vasto, a internet, criaram a poderosa ilusão do livre acesso à informação e à opinião. Libertos das agendas dos donos dos grandes grupos de comunicação social que controlam a televisão, poderíamos subscrever pequenos canais de Youtube alternativos, imunes aos vieses, parcialidade e interesses da Imprensa decadente; poderíamos receber toda a nossa informação a partir das pessoas de confiança que decidimos seguir no Twitter, no Facebook, no Instagram, no Telegram ou no Tiktok. E podia, de facto, ser assim, mas os donos da internet nunca permitirão que um Chávez seja eleito.
70% dos portugueses usam redes sociais, o dobro dos que, há uma década, o faziam. Não passa, contudo, pela cabeça de ninguém, supor que os portugueses estejam hoje mais conscientes e bem informados do que há uma década. Todas as redes sociais são empresas privadas geridas arbitrariamente pelos respectivos donos de acordo com os seus interesses políticos e económicos. Essa é a única “política” seguida verdadeiramente pelas redes sociais.
A propriedade privada das redes sociais é uma câmara de eco da democracia burguesa. Da mesma forma que a democracia fica à porta das empresas, os trabalhadores podem eleger a assembleia que faça as leis que bem entender, mas essas leis, como a própria Constituição, ficam à porta das redes sociais, que podem censurar comunistas, propagar o fascismo e violar a lei eleitoral tanto quanto queiram.
Mas a fatia de leão desta actividade censória não é explícita. A informação que recebemos nas redes sociais é controlada por algoritmos secretos. Como não temos o direito de saber com que critério nos é mostrada uma publicação e ocultada uma outra e, sobretudo, por não sabermos o que nos foi ocultado, não conhecemos a dimensão da nossa própria desinformação. De resto, estes algoritmos são tão permeáveis à desigualdade do dinheiro como os jornais e a televisão: um conteúdo não pago não consegue competir com outro pago. Ao final do dia, quem pode pagar mais, chega a mais gente. Um exemplo desta prática é a “desmonetização” (cancelamento da remuneração) dos youtubers que não cumpram critérios políticos vagos como abordarem “assuntos controversos (…) relacionados com guerras, conflitos políticos, desastres naturais e tragédias, mesmo que imagens gráficas não sejam mostradas”.
As redes sociais tornaram-se demasiado importantes na formação da opinião e das ideias para poderem estar na mão de meia-dúzia de pessoas. Nenhuma sociedade será verdadeiramente democrática enquanto a democracia precisar de alugar a sala aos autocratas.
Zelensky
A guerra canonizou-o. São Zelensky nem teve subir a uma azinheira para aparecer aos portugueses como o presidente perfeito que nunca tivemos: corajoso, altruísta, humilde e honesto; um marido invejável na corrida ao Prémio Nobel da Paz; material incorruptível para fronhas e velinhas à prova de extremistas e oligarcas. Tudo muito lindo, mas devagar com o andor que o santo é de barro.
Antes da invasão russa, a última aparição do nosso santo fora nos “Pandora Papers”, onde surge, desde 2012, como dono de uma rede multi-milionária de fundos sediados em off-shores. Quando é eleito chefe do Estado, em 2019, vende a sua participação na rede off-shore a um parceiro de negócios e futuro assessor da presidência, não sem antes estabelecer um acordo para que a mulher continue a receber dividendos até aos dias de hoje. Confirma-se que é bom marido, mas não será pior amigo: Zelensky vence as eleições com o apoio político e financeiro (41 milhões ancorados em off-shores) de Ihor Kolomoisky, oligarca acusado de assassinar opositores, de roubar milhares de milhões de dólares ao seu próprio banco e de defraudar o Estado ao longo dos anos. Desde a inauguração como presidente, Zelensky não cumpriu nenhuma das três grandes promessas com que foi eleito (combater a corrupção, pôr fim à guerra e processar Poroshenko), mas foi lesto na nomeação para o governo de vários sócios da sua produtora audio-visual e de muitos homens de mão de Kolomoisky como o advogado-gangster Andriy Bohdan. Não se cospe no prato onde se comeu.
Não só Zelensky se mostrou indisponível para controlar as milícias neonazis como permitiu que o seu patrão, Kolomoisky, as financiasse e acicatasse contra a população do Donbass, protagonizando a violação sistemática e continuada dos acordos de Minsk. Para que não sobrem dúvidas, Zelensky condecorou o neonazi assumido Dmytro Kotsyubaylo, do Sector Direito, com as honras de Herói da Ucrânia, tornando-o na primeira pessoa viva a receber a mais alta distinção do Estado ucraniano.
O herói Zelensky deu à Ucrânia os contornos nítidos de uma ditadura: 19 partidos políticos foram ilegalizados; uma dezena de jornais, rádios, sites e televisões foram encerradas e censuradas; milhares de opositores políticos foram detidos, acusados de “traição”; centenas de civis, incluindo crianças, foram despidos, pintados, violentados e atados a postes de iluminação pública; presos de guerra foram torturados, humilhados e executados. Ainda a guerra não tinha estalado e o presidente do país mais pobre da Europa não pedia ajuda humanitária, só pedia armas.
E não, nada disto justifica a invasão da Ucrânia, como denunciar os crimes de Saddam não justificava a invasão do Iraque; como simpatizar com os Taliban nunca foi condição para condenar a invasão do Afeganistão.
20 Junho, 2022 às
Antônio Santos que artigo brutal ,escreveste. Tenho que partilhar. Tudo aquilo que nos passa pela cabeça e que não conseguimos pôr no papel tu consegues,👏👏excelente