Não é novidade para mim – já o tinha escrito algures – que a próxima grande batalha da direita portuguesa – que não resume aos partidos mas também e sobretudo aos interesses e corporativismos dominantes – consistirá, invariavelmente, na tentativa de derrube da Constituição da República Portuguesa. Como sabemos, para «suavizar» as pancadas, a direita especializou-se em atribuir designações falaciosas aos seus intentos mais macabros. Da mesma forma que, entre muitas outras coisas, o «ajustamento» nunca foi ajustamento nenhum, nesta questão em concreto também não é de «revisão» do texto constitucional que estamos aqui a falar. É mesmo de derrube, de destruição, de subversão, de completa capitulação de o que resta da democracia e da vontade do povo às leis «modernas» da finança, do economicismo e da ditadura do capital. E este “grande desígnio” é aliás uma questão de elementar lógica: se a Constituição foi, de forma muito particular nos últimos meses e anos, a grande salvaguarda e o último bastião da defesa daqueles que menos têm e menos podem – dos trabalhadores, dos reformados, dos pensionistas –, importa portanto eliminar essa «pedra no sapato» daqueles que, hoje como ontem, exploram, usam e abusam daqueles que, no fundo, à custa dessa exploração – cada vez maior e mais acentuada – lhes deram e dão o pão a ganhar.
Supunha eu, confesso, com alguma e ingénua benevolência, que a direita hoje fosse capaz de produzir e trilhar estratégias e planos com o mínimo de inteligência. Mas não. Mesmo que já nos tenhamos todos rido à gargalhada com as letras capitulares e a espaçamento 3,0 desse vexatório e ridículo guião da «reforma do Estado» da autoria do «reformador» Paulo Portas. De facto, a direita que nos calha em azar, em tudo distinta (para pior) da de 1976, não passa da direita dos boys e jotas de passado obscuro, de carreiristas sem mérito nem trabalho, de economistas formatados e acríticos, de politiqueiros da cunha e dos «esquecimentos» legais, das manobras subaquáticas ou de eliminação de montados, de comentadores vendidos e propagandistas, de gente com mais dinheiro que estudo, com mais manha que ciência, com mais oportunismo que responsabilidade ou sentido de Estado.
Ora, vem tudo isto a propósito da inusitada «mobilização» editorial do jornal «Observador» para a causa do ataque à Constituição, que mais não é que uma emanação pura e dura da direita que temos hoje, perfeitamente à sua imagem e semelhança. Mas atente-se nesta espantosa afirmação:
A Constituição da República Portuguesa é um problema? Quase todos os protagonistas da nossa vida pública dão a entender que sim. Uns, quando reclamam que a Constituição está a ser atacada e violada sistematicamente por governos e maiorias parlamentares. Outros, quando se queixam de que a Constituição está a ser usada por aqueles que querem resistir à adaptação do Estado e da economia portuguesa a um mundo mais aberto e competitivo.
Portanto, “aqueles” que dizem que a Constituição está a ser atacada e violada sistematicamente por governos e maiorias parlamentares no fundo no fundo não estão a pedir a sua salvaguarda, nem a clamar pelo respeito às suas determinações, nem a zelar pelo cumprimento dos seus preceitos fundamentais, mas estão antes, afinal, a pedir a sua «revisão»! Estão a criticá-la, ou a negá-la! Espantoso! Formidável conclusão!
A total inquinação do «debate» é ainda mais evidente nesta passagem:
Entre o Verão de 1975 e a Primavera de 1976, a maioria dos deputados, integrando os grupos parlamentares do PS, do PSD e do CDS, afirmaram o Estado de Direito e a democracia representativa pluralista e resistiram às tentativas de fações do MFA próximas do PCP e da extrema-esquerda para limitar a liberdade e a democracia em Portugal. Por mais defeitos que tivesse na sua versão original e por mais insuficiências que lhe possamos encontrar ainda hoje, a Constituição começou por ser uma afirmação de democracia contra o revolucionarismo totalitário.
Ou seja, para o «Observador», num atentatório e grave revisionismo histórico e político, ou tão simplesmente numa ignorância confrangedora, a Constituição que foi na verdade a afirmação de democracia contra o fascismo e contra a ditadura fascista que a precedeu, foi afinal uma «afirmação» contra os revolucionários do PCP e de outros partidos. Espantoso! Formidável conclusão!
O parágrafo que se segue não é menos elucidativo:
A nossa democracia, devido aos condicionamentos iniciais, não pôde ser desenvolvida de uma vez. A Constituição de 1976 afirmava os direitos, as liberdades e as garantias, mas sujeitava os governos a um órgão militar não-eleito (o Conselho da Revolução) e limitava drasticamente a liberdade de iniciativa e de empreendimento dos cidadãos. Mesmo hoje em dia, é possível argumentar que mantém uma natureza programática que condiciona negativamente opções legítimas de governo.
Face a isto pergunta-se: mas qual é a Constituição no mundo que deixa os seus governos governarem a capricho? Que Constituição no mundo é que não impõe limites à acção governativa? Mas para que serve uma Constituição? O que é hoje “não ter natureza programática”? É aceitar a “natureza programática” do sistema dominante por mais podre e falido que esteja? Que querem afinal? Querem definitivamente um governo de ditadura? Um regime despótico dominado pelo «ter de ser» financeiro? Um conjunto frio, calculista, desumano de tabelas e números a decidir a vida das pessoas? É esse o contributo “positivo” que uma Constituição pode dar a um governo? Se é este «debate» que querem, se é esta a «discussão» que almejam, façam-no à vontade porque esta «velha» Constituição vo-lo permite. Mas não lhe chamem «discussão», nem «debate». Porque um debate é uma coisa séria. Porque a democracia é uma coisa séria.