Uma viagem ao coração da resistência irlandesa (1ª parte)

Internacional

Sob o céu carregado de Falls Road, no cemitério de Milltown, não se ouve mais do que a gravilha debaixo dos nossos pés. Há muitos anos, o demencial ataque de um lealista fez vários feridos enquanto a população republicana de Belfast enterrava um dos três membros do IRA abatidos pelas forças especiais do exército britânico em plena luz do dia nas ruas de Gibraltar. Lançou granadas e disparou sobre os civis que prestavam a última homenagem aos seus heróis. Em fúria, perseguiram-no e entregaram-no à polícia. Pior sorte tiveram os dois soldados britânicos que, três dias depois, vestidos à civil se atravessaram de carro em frente a uma das marchas fúnebres. O veículo foi cercado pela raiva das centenas que choravam os seus mártires enquanto os militares disparavam para tentar dispersar a multidão. Arrancados à força, foram linchados e entregues ao IRA que os abateu. As imagens dos acontecimentos encheram telejornais do mundo inteiro e Margaret Thatcher afirmou que havia sido o crime mais hediondo durante a sua legislatura. A hipocrisia de uma primeira-ministra que largou milhares de trabalhadores no desemprego e na miséria, que levou o sabor da morte às Malvinas e que deixou morrer os dez grevistas de fome do IRA e do INLA.

Atravessamos Milltown em silêncio e recordamo-los. O comandante do Provisional IRA pelos presos em Long Kesh, Bobby Sands, foi o primeiro a morrer, depois de 66 dias de inanição, em Maio de 1981, em luta pelo estatuto político dos presos republicanos. Dizia que o riso das crianças seria a vingança do povo irlandês. Depois seguiu-se Francis Hughes, conhecido pela sua coragem. Sozinho, atravessava os campos da Irlanda com o seu camuflado, a sua boina e a sua arma. Foi o homem mais procurado pelas forças ocupantes. Entre as placas com os seus nomes, as flores com as cores da bandeira irlandesa resistem para ilustrar o compromisso da população com os combatentes. Vejo o nome de Joe McCann que foi abatido a princípio dos anos 70 pelo exército britânico em Belfast. Era um dos comandantes do Official IRA. Chamavam-lhe o «soldado do povo». Ao fundo, ergue-se um memorial aos heróis que morreram na Insurreição da Páscoa de 1916. São centenas de mulheres e homens que deram as suas vidas pela causa da libertação da Irlanda.

A Falls Road é a artéria principal de West Belfast, onde se concentra a maioria da população republicana e católica. Se é verdade que as hostilidades entre republicanos e lealistas diminuíram com o processo de paz, mantêm-se os gigantes muros que separam ambas as comunidades. A partir das nove da noite, fecham-se os portões que fazem a comunicação entre as duas áreas. As casas que se encontram ao lado da divisória estão protegidas para evitar os ataques dos cocktails molotov lealistas. Junto ao muro é impressionante atravessar a Bombay Street que em 1969 foi reduzida a escombros pelo terrorismo incendiário dos seguidores do império britânico. Com o apoio das forças militares, a barbárie unionista deixou em chamas boa parte das casas. Ao longo de décadas, a comunidade republicana não teve outra solução senão armar-se para resistir às investidas. Fê-lo através do Provisional IRA e do INLA, uma cisão de esquerda do Official IRA.

O apoio da população irlandesa à resistência armada era esmagadora. Exemplo disso foi quando um blindado britânico esmagou o corpo de uma criança numa das ruas de Belfast. No dia seguinte, as casas e os muros dessa artéria apareceram pintados de branco até aos dois metros de altura. Duas noites depois, um soldado britânico foi abatido por uma só bala que lhe atingira a garganta. Depois de duros interrogatórios, as forças ocupantes compreenderam. A população havia destruído as lâmpadas dos candeeiros e pintado as paredes de branco porque os intrusos deviam destacar-se na escuridão. Os vizinhos tinham pintado as paredes de branco para que não escapasse um só inimigo.

Ao passarmos pela casa onde viveu o comunista James Connolly, uma senhora sorri-nos e pergunta se queremos que nos tire uma fotografia. Parece bastante claro que qualquer estrangeiro que caminhe pela Falls Road é simpatizante da resistência irlandesa. Por isso, encontramos respeito e hospitalidade estampada em todos os rostos. Como quando abrimos as portas do Rock Bar. Pedimos uma Guinness e uma Harp. Quando demos por nós tínhamos um grupo de destacados ex-operacionais do Provisional IRA a pagar-nos rondas de cerveja e a contar-nos como haviam fugido ao tiro e à bomba de Long Kesh e da Crumlin Jail. É que estando acompanhado por uma independentista e comunista basca tudo é mais fácil na Irlanda. Durante três horas, narraram com orgulho os históricos episódios em que haviam participado. Todos eles tinham algum familiar que havia sido assassinado pela polícia, pelo exército ou pelos lealistas. Mas, acima de tudo, o orgulho de se terem levantado de armas na mão contra a opressão sobre o seu povo é a consciência de que a violência política não é senão um meio para resistir aos ataques do império britânico. E para conquistar a liberdade.