Do parasitismo ao voluntariado

Nacional

Que se confundam termos e conceitos no contexto de disputa ideológica actual é relativamente normal e é, tendo isso em conta, que assumo já que alguns conceitos são de difícil definição, quer jurídica, quer política. Alguns conceitos são absurdos num determinado contexto económico, como o capitalismo, tal como outros são absurdos num contexto diferente, como o socialismo. Por exemplo, “voluntariado” é um conceito que só distorcido e manipulado entra no léxico do sistema capitalista. Ao mesmo tempo, “exploração do trabalho alheio”, sendo a base do capitalismo é um conceito absurdo num sistema socialista.

Mas conceitos difusos como “livre consentimento”, “liberdade”, “consentimento consciente”, “voluntariado” são claramente conflituosos quando analisados com base em ideologias opostas. O que é natural.

No outro dia, quando divulguei a pergunta que o Grupo Parlamentar do PCP apresentou na Assembleia da República, reparei que houve quem levantasse dúvidas. Houve mesmo quem tenha respondido que os voluntários dos eventos privados são bem tratados, não são explorados, porque recebem o passe para os dias de festival, ou formação para desempenhar a sua tarefa, ou basta-lhes o prémio de poderem estar envolvidos no evento. No caso, a pergunta concreta era sobre a realização de um evento comercial que lucra anualmente milhões de euros à empresa que o organiza, a Better World, sendo conhecido por Rock in Rio. Esse evento comercial que lucra milhões e entrega uma ínfima percentagem dos seus proveitos a organizações de caridade escolhidas pela própria empresa, tem como principal objectivo promover produtos e marcas, utilizando os concertos e a música como elemento de atracção e de publicidade.

Que uma empresa privada decida recrutar jovens para realizar tarefas num festival que dura alguns dias, desde que assegure os direitos desses jovens e contratualize com eles a relação laboral adequada, tudo bem.

Que uma empresa privada decida recrutar jovens para trabalho não pago, sob a forma distorcida de voluntariado, já não me parece muito bem.

Que uma empresa privada decida recorrer ao Estado para recrutar jovens para trabalho não pago, mascarado de voluntariado e certificado pela Secretaria de Estado do Desporto e da Juventude como acção curricular, parece-me absolutamente inaceitável.

No entanto, e respeito essas dúvidas, várias questões me foram colocadas por pessoas que parece genuinamente defensoras do “voluntariado” nos termos que as empresas actualmente apresentam como forma de recorrer a trabalho não pago, que não é trabalho escravo apenas porque as empresas não são proprietárias da pessoa em causa e não têm, como tinham os senhores, qualquer responsabilidade perante a vida do trabalhador em causa. Ou seja, se um escravo tinha trabalho e sobrevivência assegurada, o jovem desesperado ao ponto de trabalhar sem receber, não têm essa sobrevivência nem esse trabalho assegurados, porque não tem qualquer vínculo à entidade que explora o seu “voluntariado”, nem sequer de propriedade, como tinha o escravo.

As dúvidas começaram a levantar-se e alguém disse mesmo que era injusto combater este tipo de “voluntariado” porque é uma óptima oportunidade para os jovens participarem no Rock in Rio, que têm a pulseira paga, que têm direito a um certificado, enfim, tudo muito bonitinho e asseado. Houve alguém, já em tom de provocação que chamou a festa do avante! à discussão, comparando o trabalho voluntário da festa como o do rock in rio. Porque não se pode fazer essa comparação? o que é diferente entre o “voluntariado” com vista à exploração e o voluntariado, como nós comunistas o concebemos?

É verdade que a empresa que detém o rock in rio é privada e portanto um grupo restrito de accionistas recebe o conjunto do lucro gerado pelo trabalho dos “voluntários”, enquanto que na festa do avante! os voluntários são simultaneamente os membros do partido que acumula os proveitos do trabalho. Mas isso pode não bastar para impor a quem quer estar no rock in rio o rótulo de trabalhador não pago em vez de “voluntário”.É igualmente verdade que na festa do avante! existe um projecto político e um ideal que mobiliza os voluntários e que podemos alegar que tal projecto não existe no rock in rio, mas isso seria injusto porque pode perfeitamente haver quem queira participar no evento e partilhar o seu ideal capitalista, contribuir para a exploração da arte e da cultura, enfim, é um objectivo político tão legítimo quanto o seu contrário.

Mas o que muda mesmo, entre o voluntariado e o parasitismo mascarado de voluntariado é isto:
-um jovem a quem não fosse dada a pulseira para aceder ao rock in rio, ou a qualquer outro evento comercial que recorra a “voluntariado”, a quem não fosse certificada para currículo a sua participação naquele evento, dificilmente lá estaria prestando aquele trabalho.
-um voluntário de uma associação popular, da festa do avante!, de uma causa desinteressada e benévola, tem outra postura.

Noutros termos: um jovem a quem não fosse paga a entrada no evento, a quem não fosse reconhecido e certificado o trabalho, estaria lá como “voluntário”? é que um voluntário estaria, como aliás se vê na festa que usei como exemplo, a do avante! em que o voluntário está lá, mesmo pagando ele próprio todas as despesas, incluindo a entrada na festa e mesmo sem que o trabalho ali realizado sirva de valorização curricular, porque o mais provável é que, para arranjar emprego, tenha de esconder que o faz.