Posso retroactivar?

Nacional

E se de repente estiver a frequentar o segundo ano da licenciatura de Direito e receber uma carta em casa a dizer que vai ser expulso deste curso e que tem dez dias para se inscrever noutro, isso é? Nuno Crato no seu melhor, o ministro que nunca falha!

O Supremo Tribunal Administrativo deu razão ao recurso apresentado pelo Ministério da Educação e Ciência no processo referente aos alunos do ensino recorrente, que tinham ingressado no Ensino Superior com critérios diferentes dos do ensino regular. Em 2012, a primeira instância de Lisboa tinha dado razão a estes alunos e alunas. Mais uma vez se prova que uma das palavras preferidas deste Conselho de Ministros é “retroactivo”.

Governar, legislar e destruir o que está para trás é uma técnica que necessita perícia, paciência e persistência – três “pês”, portanto – para fugir à Constituição. A letra “pê” também serve para escrever a palavra “parvoíce”. E “passado”, que é aonde está preso este governo. Esta coisa de ter havido outros a governar antes deles tira-os do sério.

Estes alunos e alunas estão agora no limbo, e não há deus ou rezas que os salve de lá ficar durante uns tempos. Nesta notícia ouvimos duas histórias na primeira pessoa e percebemos que, por acaso, até entraram na universidade utilizando vagas especiais para alunos do ensino recorrente – logo não roubaram espaço a ninguém -, até percebemos que muitos fizeram exames nacionais para subir a média, e percebemos que o Estado não pode mesmo mudar as regras a meio do jogo com efeitos retroactivos, é injusto, é desleal e é contraproducente. Mas entre trapalhadas e mentiras, Crato lá vai desfazendo escola, lá está, nunca falha!

Exemplos: os cortes nas pensões e nas reformas e os apoios da DGArtes às estruturas de criação artística. Conheço bem os dois casos.

Os meus avós, tudo somado, trabalharam cerca de 160 anos para o país e os seus cidadãos. Dois no sector público, um no privado e uma em casa, a tratar de criar três filhos e de cozinhar, passar, limpar, etc. Todos eles, com mais de 70 anos, estão agora a tratar de reduzir custos em tudo e mais alguma coisa. E atenção, eles continuam a ser dos “privilegiados” com chorudas reformas acima dos 600 euros. O governo quer ser retroactivo, mas o plano de vida dos meus avós só se fez para a frente, o cidadão comum tem tendência a não conseguir alterar o seu passado. O governo traiu a confiança dos meus avós e quer roubar-lhes centenas dos euros que eles descontaram.

Os concursos da DGArtes têm várias escolhas no menu, os que importam para o caso são os concursos plurianuais: bienais e quadrienais. Ora o que é que aconteceu a estes apoios? O governo, imitando o seu antecessor – honra seja feita a quem a merece, e Sócrates e Canavilhas merecem tudo -, decidiu cortar o apoio a meio do jogo. Com tanto corte retroactivo, e que se manteve no concurso que decorreu no final de 2012, as estruturas de criação têm agora acesso a menos 75% das verbas.

Quando, sem aviso, surgiu o primeiro corte, as estruturas lá refizeram os seus planos, cancelaram uns espectáculos, fizeram outros com menos pessoas, diminuíram alguns custos. Depois chegou o segundo, outra vez sem aviso, e lá se refez tudo outra vez. O mais curioso é que havia uma data de papelada a ser entregue à DGArtes em tempo útil. Falhas e estás fora! O(s) governo(s) mudou(aram) as regras do jogo a meio e quem teve de arcar com as consequências e com a burocracia cronometrada, foram as estruturas de criação artística. O governo traiu a confiança das estruturas e roubou-lhes milhares de euros que elas precisavam para cumprir os planos que tinham contratualizados, eu repito, contratualizados.

A sério, o governo pode querer alterar o sistema de pensões e reformas, acabar com os apoios às artes, pôr os alunos do ensino recorrente em igualdade com os outros e pode querer que a chuva caia de baixo para cima, mas façam-no de hoje em diante. O resultado das eleições foi infelizmente o que foi, mas o mandato é de Junho de 2011 em diante. O que na opinião do governo estava ou está mal, pois que mudem, mas repito, era só de Junho de 2011 em diante…

Com tanta coisa retroactiva, com tanta quebra de confiança, eu pergunto-me: e se os cidadãos tivessem poder de retroactividade no voto?

Autor Convidado *
André Albuquerque