Um cidadão inglês de nome Henry Stewart e, de resto, anónimo, escreveu uma brevíssima carta ao The Guardian, em 2016. Nessa carta, avança que nunca uma mulher de burqa, hijab ou burkini lhe fizera mal, pois são os homens de fato, que condenam a economia ao colapso, arrastam milhões de pessoas para a miséria e provocam guerras desastrosas e ilegais, os responsáveis pelos males do mundo. Stewart arremata, então, sugerindo que, se queremos começar a policiar o que os outros vestem, no lugar das burqas, devíamos antes banir os fatos. É isto que o feminismo liberal, esvaziado de coerência e luta de classes, não atinge. Às feministas liberais, a burqa e o hijab causam tanto, mas tanto, transtorno que não lhes sobra tempo para se incomodarem com os homens de fato, esses que condenam a economia ao colapso, arrastam milhões de pessoas para a miséria e provocam guerras desastrosas e ilegais. O feminismo liberal refugia-se, repetidamente, no regaço do opressor e despreza as mulheres que todos os dias caem como tordos, assassinadas, amputadas, violadas e aprisionadas às ordens de homens de fato.
Enquanto mulheres palestinianas, com hijab ou sem ele, morriam aos milhares, na sequência de ataques aéreos indiscriminados, perpetrados pelo Estado genocida de Israel, não puderam contar com as feministas liberais. Após o fim deste cessar-fogo temporário, é da expressa vontade do governo israelita continuar a matar. E as mulheres palestinianas continuarão sem ocupar os pensamentos das feministas liberais por mais de um par de segundos. Não serão tema válido para os seus tweets ou os seus reels. Não constituem uma prioridade. Não terão direito às suas lágrimas, ao seu apoio ou à sua mui exclusiva sororidade. A morte de mais de 46 500 palestinianos na Faixa de Gaza — só desde dia 7 de Outubro de 2023 —, entre os quais 70% são mulheres e crianças, não lhes tira o sono, pois optam, a cada dia que passa, por defender os seus carrascos. As que, por seu turno, ficam em silêncio, não pensem que escapam — são igualmente cúmplices, desde o instante em que a hipocrisia se apoderou da totalidade dos seus corações. O silêncio também mata.
Este artigo é, em primeiro lugar, para as campeãs do jogo do silêncio; as que querem salvar as mulheres do Hamas, do Hezbollah, dos Talibã ou dos governos árabes, do alto da sua superioridade moral, mas já não querem salvá-las dos Estados Unidos ou do sionismo genocida de Israel, sem os quais, em boa verdade, nem o Hamas, o Hezbollah ou os Talibã teriam ganas de existir. Aquelas que dirão tudo e mais um par de botas sobre o filme de terror que atravessam as mulheres, no Afeganistão, sem nunca mencionar quem o dirige, verdadeiramente, entre desonestidade e ignorância. É para aquelas cujo feminismo tem fronteiras, muros e ameias, e cuja solidariedade começa e acaba no ocidente, chegando, nos dias bons, a molhar os pézinhos no Rio Don, ou ainda para aquelas que preferem vender a alma a perder seguidores. Sem surpresas, o segredo de qualquer influencer feminista com êxito é, frequentemente, a covardia.
Com 350 000 seguidores, Tânia Graça tem uma plataforma de dimensão muito considerável e é, em Portugal, o exemplo acabado de um feminismo que apregoa as liberdades individuais em detrimento da emancipação colectiva. É na sua página que muitas mulheres e meninas têm a oportunidade de ver tabus desconstruídos ou se educam acerca de sexualidade feminina, higiene menstrual, entre outras coisas. Até aqui tudo bem. Mas porque se ocupa exclusivamente da sexualidade? Porque detém a sua página um monopólio dos supostos “assuntos de mulheres”? Bom, dizia a notável Maria Lamas que o feminismo burguês se ocupa, essencialmente, da sexualidade da mulher, convertendo-se em inconsequente individualismo e desmarcando-se, ao mesmo tempo, de abordar a exploração capitalista, com a qual convive lindamente. Que não me interpretem mal: a sexualidade é um tema válido, apenas não é o único com que o “feminismo” deve ocupar-se, num mundo cujo ritmo é ditado pelos tambores da guerra. Ou a guerra não é “assunto de mulheres”? As guerras, que vitimam tantas mulheres, em todo o mundo, a toda a hora e das mais tenebrosas formas, não são “assunto de mulheres”? Não é “feminista” sair em defesa das que não têm voz, ou, simplesmente, não dá tantas visualizações quanto reviews de vibradores e “sessões de terapia” com princesas da Disney?
A mesma Tânia Graça tem, em destaque, no seu perfil, uma publicação que remonta a Maio de 2023, quando foi representar Portugal na Comissão Europeia, num “encontro de ativistas e produtores de conteúdo dos vários estados membros”. Diz que a UE é um projecto que a representa e que “temos a proteção e supervisão da UE para prevenir muitas atrocidades”. E o artigo escreve-se sozinho. Exactamente que atrocidades previne a UE, se mais fácil é enumerar resmas de atrocidades que a mesma patrocina? Se o projecto da UE representa Tânia Graça, não é seguro dizer-se que o genocídio do povo palestiniano a representa também, visto ser parte desse projecto? É que a própria, ao não dizer uma palavra sobre o genocídio em curso, não estará muito preocupada em desmenti-lo. Se o seu objectivo é tão simples quanto chegar ao maior número de mulheres possível, nomeadamente, — e não hostilizando! — aquelas que acham muito bem queimar crianças vivas, desde que longe da Europa civilizada, ou que não se apoquentam com os recentes despedimentos colectivos de operárias têxteis no seu próprio país, pode mesmo alterar a sua residência fiscal lá para o mundo encantado dos brinquedos sexuais. Nunca se tratou de um conflito entre sexos, mas de uma guerra entre classes.
Enquanto embaixadora (a título vitalício) da clique de feministas sociopatas que acham estupenda a carbonização de crianças na Faixa de Gaza e já não têm vergonha de o dizer, não podia deixar de dedicar umas linhas a Maria João Marques. Mas não demasiadas, porque não o merece. Maria João Marques, também reconhecida pelas suas posições indecentes sobre imigração, julga que o índice de liberdade de um país se mede através do comprimento das saias. Aliás, segundo a sua lógica delirante, um país é tanto mais livre quanto mais curtas forem as saias. É a própria que o diz, porém, não estará recordada de que, por exemplo, no Irão, onde escasseiam as saias curtas, há mais mulheres no ensino superior, mais mulheres cientistas ou nas “posições de poder” de que as feministas liberais tanto gostam, do que em Portugal ou nos Estados Unidos, apesar da repressão de que são alvo. A quem interessa ver o mundo a preto e branco? A quem interessa propagar uma definição tão tosca e fútil de liberdade, sem qualquer noção de colectivo? E quem serve este feminismo de mini-saia, se não os homens de fato?
Este também é um artigo para as que aparam as unhas ao dragão em vez de lhe cortarem a cabeça — para as que atacam sintomas e nunca causas, garantindo o ciclo da exploração e tentando convencer-nos de que é inquebrável. Vai daí que, ao contrário do que diz o mote da manifestação anti-racista do passado 11 de Janeiro, em que vários rostos hipócritas do PS se infiltraram, como se não fosse, também, contra eles que nos manifestamos, deve sim, encostar-se a deputada Isabel Moreira à parede. Que tipo de feminismo é o seu se permite que as mulheres trabalhadoras do seu país vivam no limiar da pobreza ou que a febre do lucro mantenha abertas as creches até à meia-noite? Que tipo de feminismo é o de quem, na Assembleia da República, vota contra a criação do regime de dedicação exclusiva no SNS ou o reforço das verbas da FCT? Não fossem, actualmente, as mulheres quem mais sofre com a falta de médicos de família ou o encerramento das urgências de ginecologia e obstetrícia. Não fosse uma esmagadora fatia das bolsas da FCT atribuída, precisamente, a mulheres, reféns da precariedade num país que não investe na ciência. Não são estes temas “feministas”? “Assuntos de mulheres?” Dizer água não mata a sede, como encher a boca de “igualdade de género” não garante às trabalhadoras portuguesas os seus direitos fundamentais. Voltando ao Médio Oriente, dizer, vagamente, que é urgente um cessar-fogo ou partilhar publicações da ONU no Instagram, sem nada fazer em conformidade, e boicotanto, ainda, o reconhecimento do Estado da Palestina pelo governo português, é só mais um “dilema do comboio” — talvez não matem, mas lá que deixam morrer, deixam. Não cabe num artigo só o cinismo do PS e suas “feministas” de fachada.
E que tipo de feminismo é o feminismo que se isola, se encerra numa caixinha, finge que os problemas das mulheres não se relacionam com quaisquer outros e se restringe ao que fazem na cama, com quem casam ou não casam e se são “ambiciosas” o suficiente para alcançar abstractas “posições de poder”? De que serve, aliás, uma mulher no poder, se esta for porta-voz dos mesmos interesses perversos e belicistas do capital? De que valeu uma Margaret Thatcher ou uma Christine Lagarde às mulheres deste velho continente em declínio? Acaso Alice Weidel, líder da AfD, partido alemão de extrema-direita em crescimento galopante, é uma aliada das mulheres trabalhadoras? É que Weidel é, de facto, a verdadeira recordista do “lugar de fala”, casada que é com uma mulher imigrante e racializada, não deixando de afrontar os direitos cívicos, sexuais e reprodutivos, ou de assumir posições explicitamente anti-imigração. E ainda para quem preferia o genocídio de Kamala ao de Trump, por esta ser uma mulher negra, indo-asiática, empoderada, e lançar bombas com purpurinas e confetes, como se matar inocentes com bombas embrulhadas em democracia fosse mais digno — como dormem à noite? São coisas que se me perguntem, diria o saudoso José Mário.
Num mundo paralelo ao que habita a cambada supracitada, a brava Khalida Jarrar, presa pela primeira vez em 2015, quando ainda tinha os cabelos negros, foi libertada no Domingo passado, com os cabelos todos brancos. Passou os últimos dez anos da sua vida entre prisões israelitas, sujeita a condições subumanas, privada da sua liberdade, actividade política e até mesmo de comparecer ao funeral da própria filha, por ousar existir, resistir e defender a autodeterminação do seu povo. Onde está sequer o story destas “feministas” a tempo inteiro a propósito da sua tardia libertação? Parafraseando Almada Negreiros e seu Manifesto Anti-Dantas — uma geração com uma feminista liberal a cavalo é um burro impotente.
Já estão para aí a pensar o costume, que este é um artigo muito agressivo. Mas sabem o que é mesmo agressivo? Esperar 20h nas urgências de um hospital, chegar ao fim do mês sem dinheiro para saldar a dívida à EDP, ter de escolher entre pagar a renda ou comer. Todos estes são, ou deveriam ser, temas absolutamente prioritários para qualquer activista pelos direitos das mulheres, já que as mulheres não são apenas seres de luz que vibram alheios aos baixos salários e substituem cuidados médicos pela energia da lua — todos estes são “assuntos de mulheres”. Agressiva é a pobreza, a guerra, a miséria espalhada por este ocidente cínico em que se sentem tão confortáveis as feministas liberais e, particularmente, os engravatados (e engravatadas) a quem fazem ouvidos moucos. Ao contrário de quem vive do seu trabalho, estes sim, estarão eternamente gratos pelos seus votos contra, pelos seus artigos de opinião no Expresso, ou pelos seus podcasts e os seus reels sobre tudo e mais alguma coisa, menos a recusa veemente do individualismo e a organização das trabalhadoras em todo o mundo.
*Link para artigo anterior e complementar aqui.
27 Janeiro, 2025 às
Artigo imensamente pertinente. Urge desmantelar a hipocrisia das influencers e companhia que lucram com o seu feminismo desprovido de qualquer materialidade. Parabéns por este artigo e pelo anterior!