Fidel e eu [texto originalmente publicado a 22.03.2016]

Internacional

A visita oficial do presidente dos Estados Unidos da América a Cuba é um momento particularmente sensível no debate político e ideológico no plano nacional e internacional. Contra os comunistas portugueses, por exemplo, são arremessadas as velhas e gastas acusações de sempre, todas elas enganosas e aldrabadas, todas elas desmascaradas pela realidade.

Este post não tem como objectivo rebater nenhuma das fantasias alucinadas dos e das aprendizes de Márcia Rodrigues que ao longe vêem uma realidade desfocada pela desinformação ou por reaccionária miopia. Que fiquem com a opção aplicável, ou com as duas, que bens desta natureza têm valor de mercado neste decrépito capitalismo de início de milénio. O propósito é outro e declaro-o sem rodeios: lembrar Fidel e a sua importância na minha vida.

Fidel e eu 

Tomei consciência da importância da revolução cubana quando aos 15 ou 16 anos li “Fidel e a Religião”, um livrinho publicado pelas Edições Avante!, e que colige as transcrições de um conjunto de conversas entre Fidel e Frei Betto, um dominicano brasileiro com um passado de resistência à ditadura militar que lhe custou a prisão e a tortura [1]. Curiosamente, e ao contrário de muitos dos meus camaradas de juventude, Fidel foi para mim uma descoberta mais precoce do que Ernesto “Che” Guevara.

Quando em 1999 visitei Cuba, onde permaneci durante três semanas em representação da Juventude Comunista Portuguesa, já tinha lido vários livros de Fidel, incluindo a transcrição da sua defesa em tribunal, em 1953 e após o malogrado assalto ao Quartel de Moncada; também tinha estado em Matosinhos, ouvindo o seu notável e longo discurso em defesa da Revolução cubana, perante um pavilhão repleto de gente. Fidel foi uma das grandes referências da minha formação política, da construção da minha mundivisão.

Em Cuba, finalmente

Foi por isso com grande entusiasmo que no Verão de 1999 desembarquei em Havana e com destino a Matanzas, integrado numa Brigada Internacional que para além de portugueses incluía camaradas da KNE grega e da SDAJ alemã. A chegada a uma pátria do socialismo foi para mim uma experiência emocionalmente marcante que me fez pensar na emoção que os meus avós teriam tido vinte anos antes, quando visitaram pela primeira vez países como a Bulgária, a República Democrática Alemã, a Hungria e, claro está, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Em 1999 Cuba recuperava do violentíssimo “período especial”, aquele que se seguiu à desintegração da URSS. O país começava a reerguer-se mas as consequências no ânimo dos cubanos eram ainda visíveis. Não me entendam mal: a boa disposição das pessoas em Matanzas, Havana ou Santa Clara não tinha nesse tempo qualquer comparação com o Portugal pós-cavaquista do final dos anos 90… mas as desastrosas consequências de uma excessiva dependência política e económica da União Soviética haviam provocado privações várias para os cubanos. Comunistas e não-comunistas referiam-nas abertamente, com elevado e inteligente sentido crítico.

Saí de Cuba mais comunista do que entrei. O que vi e senti em Cuba fundamentaram a minha convicção de que o Socialismo comporta as melhores soluções para os múltiplos problemas que a Humanidade enfrenta neste virar de milénio, dos económicos e sociais aos ecológicos. Em Cuba, no meio de tanta dificuldade, encontrei sempre respostas ou questões bem colocadas; foi aliás nos vários contactos que mantive com representantes de estudantes e de trabalhadores cubanos que percebi a importância fundamental de formularmos as perguntas certas para procurarmos e – desejavelmente – obtermos as respostas adequadas.

Respostas cubanas para problemas cubanos

A resolução das questões mais complicadas do chamado “período especial” foi fundamental para que os cubanos começassem a fazer aquilo que compreenderam tarde demais não ter prevenido em tempo devido: encontrar respostas cubanas para problemas cubanos.

Se por cá nos temos como mestres do desenrasque é porque nunca vivemos mais de cinquenta anos de bloqueio económico imposto pelo nosso vizinho geográfico e principal parceiro comercial, por mero acaso a mais poderosa economia do mundo. Não temos a mínima noção do que é o bloqueio nas suas consequências quotidianas mais elementares. Se pátria do desenrasque existe ela é caribenha e socialista. Um desenrasque que não é método mas recurso de circunstância para a resolução das mais diversas limitações diárias: o fim da URSS e a perpetuação de um bloqueio genocida resultou para o gigante ianque ao contrário das suas previsões; a Revolução parece hoje mais sólida e entranhada no povo do que em 1991, quando Gorbatchov liquidou o socialismo no Leste da Europa e entregou Cuba de bandeja aos falcões de Washington.

A perspectiva do fim do bloqueio não é uma concessão dos EUA a Cuba, bem pelo contrário; trata-se antes do assumir da derrota perante a tenacidade e a resistência de um povo. Cuba vergou a política externa agressiva da maior potência económica e militar da história da Humanidade.

Fidel somos nós

Durante um encontro com membros de um dos vários CDR de Matanzas perguntei a uma senhora que havia vivido todos os 40 anos de Revolução entre 1959 e 1999 como seria após a morte de Fidel. A mulher sorriu e respondeu-me, convicta, que Fidel já não era apenas o homem e que se tornara um símbolo da resistência e das conquistas cubanas. Fidel, dizia-me ela, é a saúde pública e a educação para todos, Fidel é ser Cuba um modelo sem par na América Latina no que diz respeito ao acesso à cultura. “A revolução deu-nos educação gratuita e para todos, não existe nenhum outro país do continente que o possa afirmar, como nós”. “Fidel é tudo isso… e somos nós”. Não lhe li nas palavras pingo de culto de personalidade. O elogio não se destinava ao homem mas ao povo cubano.

As saudades que guardo de Matanzas são grandes. Regressaria hoje, se pudesse. A pátria de Fidel deixou marca profunda em mim, sou também eu – permitam-me a imodéstia – um pouco Fidel também. E é com esse pequeno pedaço de nacionalidade cubana que Cuba deixou em mim que desta modesta tribuna lanço o grito tantas vezes escutado por lá, “Patria o Muerte, Venceremos!”.

Notas:
[1] A quem tiver interesse aconselho o filme “Batismo de sangue” (2007), que conta a história do grupo de frades a que pertencia Frei Betto [trailer].