“Douradinhos é bom, mas é pouco.”

Nacional

Há pouco mais de um ano, na fila do supermercado, o homem à minha frente, acompanhado da sua filha, passou várias embalagens de arroz como compra. Aliás, tanto quanto me recordo, arroz foi tudo quanto comprou, juntamente com um qualquer enlatado de conserva. Era assim que se alimentava.

Hoje, no supermercado da Bela Vista, em Setúbal, uma mãe com duas filhas só comprou quatro embalagens de congelados. Uma de rissóis, uma de croquetes, duas de pastéis. A conta foi 10 euros e uns cêntimos, dois contos e qualquer coisa. A mulher pagou com uma nota e umas moedas. Estavam contadas.

Há dois anos o país estava ocupado, sob um pacto de submissão assinado por PS, PSD e CDS junto de um clube de agiotas internacionais que predaram a economia portuguesa de uma forma como eu, com 35 anos, nunca tinha visto. Hoje, o país continua asfixiado pelo garrote da política de direita que faz da dívida e do défice as amarras que justificam o desvario. Não, não é nem nunca foi “austeridade”, nunca passou de assalto. Não há rigor nas contas públicas compatível com 8 500 milhões de euros sangrados do trabalho realizado em Portugal para pagar a dívida de uma burguesia que viveu e vive à grande e à francesa, comprometida com a grande banca em Portugal que, por sua vez, canaliza milhões para os centros do grande capital que se federam na banca francesa e alemã. Cerca de metade da dívida portuguesa é detida por entidades estrangeiras e mesmo a parte detida por entidades nacionais, bancos, fundos de investimento e pequenos aforradores, corresponde em boa parte a dívida emitida para suportar os negócios dos mais ricos dos mais ricos.

Uma mãe que alimenta os filhos com o que tem a mais não é obrigada. Mas um Estado que condena as mães e os pais a alimentar os filhos com arroz e conservas, ou com rissóis e pastéis não faz o que pode, muito menos o que devia.

É verdade que que existem sinais de inversão de sentido de algumas políticas. Os portugueses não estão sujeitos, neste preciso momento a uma política orientada para o seu empobrecimento e para o aumento da exploração. A participação do Partido Comunista Português numa solução que visou viabilizar um Governo que se aproximasse do sentido de voto dos portugueses também determinou que em áreas fundamentais, como no rendimento do trabalho, hoje se debata o ritmo da reposição de salários e pensões e não o ritmo ou a gravidade de novos cortes, como PSD e CDS pretendiam e pretendem. Não é menos verdade que a situação actual não ultrapassa os constrangimentos fundamentais com que os portugueses estão confrontados, por opção do partido que constituiu Governo.

As pessoas, os trabalhadores, continuam a pagar com o seu trabalho os custos das opções de destruição e afundamento nacional de sucessivos governos, aliciados pela maravilha europeia que afinal de contas não passa de um ardil para impor o capitalismo como regra, a fórmula mais sedutora que os partidos da política de direita, com particulares responsabilidades do PS, encontraram para colocar, mais do que o socialismo, a própria Constituição da República, na gaveta. Que é como quem diz que foi a forma encontrada para trair Abril pelo atalho mais rápido.

Abril é soberania, União Europeia é submissão. Abril é tomar o partido do Trabalho na luta de classes, União Europeia é impor as regras do Capital. Abril é democracia, União Europeia é plutocracia, cleptocracia, pornocracia. Abril é Educação e Cultura, União Europeia é formação profissional e entretenimento. Abril foi um sorriso na cara dos trabalhadores, uma esperança imensa, uma ascensão audaciosa da classe operária. A União Europeia é a realidade de hoje. É um rissol.

A fome nas escolas persiste. Os baixos salários e o desemprego persistem. A estagnação económica está longe de vencida. Os juros da dívida pesam cada vez mais no orçamento do Estado. Apesar dos avanços, as questões estruturais mantêm-se. E o problema do país não é simplesmente económico, como a linguagem de pau da política, do Governo e de boa parte do Parlamento, fazem crer. O problema do país é político.

O Secretário-Geral do PCP, nos momentos próximos da construção da actual solução política que afastou a cangalhada PSD e CDS do Governo, afirmou que a fase actual da vida política não pode gerar atentismos. Apesar da esperança que o afastamento do PSD e CDS pôde criar nas massas trabalhadoras, esperar não pode ser o resultado. Os pais não podem continuar a comprar pacotes de arroz à espera de que a política do Governo lhe permita comprar mais um saco de arroz. A mãe não pode comprar rissóis, esperando um dia poder comprar mais uma embalagem de congelados. Não. Não enquanto outros podem refastelar-se nas piscinas de uma riviera qualquer, passear num iate pelo Caribe, ou descansar num hotel brasileiro com as contas pagas pela família Espírito Santo. Não enquanto Ricciardi for o banqueiro do ano. Não enquanto a EDP, construída com o investimento e o trabalho dos portugueses, pagar milhares de milhões de lucros a chineses. Não enquanto os banqueiros se vão revezando entre os campos de golfe e as cadeiras da administração que escolhe quem tem e quem não tem crédito. Não enquanto Governos escolhem pagar 400 mil euros anuais a gestores públicos.

O potencial progressista da actual situação política nacional depende, não dos orçamentos do Estado, não do Governo, não da União Europeia, não da dívida, não do défice, não dos patrões, mas essencialmente da capacidade que tenhamos, todos, de compreender que esta situação não é uma solução. Não é uma solução. É apenas um passo na resistência à política de direita, um passo com limitações que só podem ser vencidas com a força do povo, com a consciência clara de que este caminho não tem futuro a não ser que Abril seja trazido para os objectivos políticos de um Governo, que este caminho não é a solução de que o país precisa, mas apenas a que foi possível criar no presente, com os olhos postos no futuro.

O primeiro passo para o futuro é esse, não nos contentarmos com três embalagens de pasteis congelados em vez de duas. E acima de tudo não esperar que a terceira nos caia no regaço. Olhos postos no futuro com um movimento operário forte, na frente da luta. Essa é condição necessária para Abril e para o futuro dos portugueses. E não há Governo, nem correlação de forças que mude isso. Há é situações políticas que favorecem a ascensão política do operariado e situações que a tolhem.