Filhos da puta

Nacional

Não sei bem por onde começar, confesso. O cancro é uma doença filha da puta; diz-me muito, não por mim, felizmente, mas por outros. Sim, aquela mania de tomar as dores dos outros como se fossem minhas. Ou nossas. Poucos ou nenhuns estarão entre os sortudos que não têm um amigo ou familiar que teve ou tem cancro.

Eu tive, bem de perto, e guardo cá dentro uma das imagens que há-de acompanhar-me para sempre. O Público de hoje conta-nos uma história daquelas que devia fazer-nos corar de vergonha.

Um euro, dois. Um paliativo para aquela família, com um filho dependente, de 16 anos, que perdera o rendimento social de inserção, no valor de 408 euros. O rapaz deixara a escola, “para cuidar da mãe”, mas Armindo não sabia explicar se fora esse o motivo do corte. Conhecia, isso sim, as consequências dele. O senhorio do “apartamento” onde dormiam, na Rua Álvares Cabral, fechou-lhes a porta da casa. Trabalha com dinheiro à vista, sem recibos. “Só me deixa entrar se eu lhe pagar 400 euros”, queixava-se o antigo motorista que, ao mesmo tempo que luta para se afastar da droga que lhe “estragou a vida”, convivia, naquela casa partilhada por outros inquilinos, “com um “ambiente pesado, tentador” para um ex-toxicodependente.

O excerto acima traduz uma parte daquilo em que os mesmos media que nos trazem estas histórias comoventes ajudam a transformar-nos, com manchetes de saídas limpas, de milagre económico, de descidas do desemprego, das empresas, coitadinhas, que querem trabalhadores e não encontram quem queira trabalhar. Filhos da puta. Não têm outro nome. Mais os opinadores do “tem que ser” e “não há alternativas”; do Camilo Lourenço ao Alberto Gonçalves, passando pelo inenarrável José Gomes Ferreira. Nada disto é inocente, nem o facto de terem tempo de antena.

E ouvir o senhor ministro da Saúde, ainda nesta semana, no Parlamento, falar sobre as melhorias na saúde e o caralho que o foda. Filho da puta. E os gráficos com o aumento do recurso a seguros de saúde aqui à mão para esfregar-lhe na tromba, como as pessoas que deixam de recorrer ao SNS porque as taxas não são moderadas, são moderadoras. Queres saúde? Pagas.

Os sacrifícios para os mesmos do costume, mais para aquela mulher e para o puto de 16 anos, que ficou sem o RSI – venham de lá essas palmas, filhos da puta, não é disso que alguns tanto gostam? – que era o sustento da casa. Da casa, não. Do apartamento partilhado, por 400 euros, mais o filho da puta do senhorio, tão sensível como os senhores da Idade Média.

Todos os dias acontecem casos semelhantes, com mais ou menos gravidade, mais ou menos flagrantes. Quando realidades como esta nos rebentarem no focinho e formos obrigados a lidar com ela, com certeza que o país terá outro rumo. Até lá, da minha parte e de muitos como eu, felizmente, poderão contar com o nosso esforço para acabar com esta gente antes que eles acabem connosco. Não pode haver meias palavras. Nem meias medidas. Nem meias lutas. Seja nas ruas, nas urnas, nos locais de trabalho, nos órgãos do poder local, entre amigos, onde quer que seja. Estes filhos da puta têm de ser corridos. E, depois disso, julgados. Pelos tribunais ou não, mas julgados.

A saúde é uma regalia foi algo que ouvi ainda na semana passada da boca de um jovem deputado do PSD na minha União de Freguesias. Todo um programa numa frase. E a mulher ali nas escadas, indiferente até à igreja do Vaticano, agora tão alva e pura e piedosa como a virgindade do papa Francisco. Filhos da puta.