Género só há um. O humano e mais nenhum!

Nacional

Depois do artigo de António Santos num jornal online sobre a chamada política identitária e sobre a utilização de marcas identitárias por parte da classe dominante para a atomização das massas e para a limitação das suas convergência, sinto-me desafiado a deixar um contributo sobre uma não menos questão dos movimentos que, um pouco por todo o mundo, vão tomando o espaço de um feminismo de classe, ocultando as reais questões que dividem no contexto capitalista o homem e a mulher.

O próprio conceito de “género” é adicionado ao acervo léxico da luta feminista para descrever a forma como a exploração capitalista prejudica a mulher até nos comportamentos que se lhe esperam. Ou seja, numa primeira abordagem, é o próprio movimento feminista americano e inglês que, nos anos 70, inicia a utilização do termo “género” como forma de designar o conjunto dos comportamentos, expectativas e possibilidades que a sociedade atribui a um determinado sexo. Essas características estariam relacionadas com o sexo, mas não são atributos físicos, são construções sociais que traduzem precisamente o contexto em que são formadas.

A palavra “género” contamina hoje praticamente todos os sectores da vida política e praticamente todos os partidos e movimentos, particularmente os movimentos do feminismo burguês. A liberdade de identidade de género tornou-se palavra de ordem, quando a luta devia colocar “o fim do género” como bandeira essencial.

Se o género são características atribuídas pela definição de papéis sociais a um ou outro sexo, então os que lutam por uma sociedade sem papéis definidos devem lutar pela abolição da própria divisão de género. Não sendo possível – nem desejável – eliminar as diferenças físicas entre os dois sexos do ser humano, é urgente eliminar quaisquer outras diferenças.

O conceito de “género” nasce pois para justificar a necessidade de emancipação da mulher, tendo rapidamente sido apropriado por todos – esquerda oportunista e direita – para um resultado exactamente oposto. A luta pela liberdade de identidade de género sulca mais fundo as diferenças de género, a luta pela autodeterminação de género ainda mais e a luta pela afirmação de géneros vários, muitas vezes introduzindo comportamentos sexuais ou emotivos na definição do próprio género. A divisão de cada sexo em cis e trans, como se existissem por obra e graça do senhor características sociais do masculino e do feminino introduz nova pulverização de um movimento que podia ser tanto mais poderoso quanto menores clivagens se lhe fossem colocadas.

A esta panóplia de géneros surge muitas vezes associada uma misandria, como se fosse o ser humano masculino o centro do patriarcado e o patriarcado estivesse desligado da dinâmica social de forças produtivas e cadeias de exploração. A mulher, antes de integrar o processo produtivo sendo explorada pelo grande capital por tarefas realizadas para o próprio capital, já fazia parte do processo produtivo e já era explorada pelo capitalista. Sendo o salário – na perspectiva marxista – o conjunto de bens e serviços (monetarizado) estritamente necessários para que o trabalhador volte ao trabalho no dia seguinte – a mulher que os prestava era já uma trabalhadora que substituía parte do salário do homem, melhorando a mais-valia do patrão, deteriorando a do homem e a da mulher. A exclusão da mulher do processo de exploração capitalista nunca existiu. Eram-lhe contudo atribuídas tarefas – não pelo homem individualmente (excluindo aqui a relação sexual e a reprodução da mão-de-obra), mas pelo sistema capitalista – cuja remuneração era inexistente por estar integrada no salário do homem. A integração total da mulher no processo produtivo é um avanço social, apesar de isso significar que passa a ser explorada directamente pelo grande capital, de forma ainda mais grave do que o homem. É um avanço porque liberta, ainda que não totalmente, a mulher de uma dependência económica e de uma dependência social do homem.  Apesar disso, significa a duplicação do trabalho da mulher por ser o trabalho do homem ainda mais bem remunerado pelo capital. As justificações capitalistas são muitas para que o salário das mulheres não atinja ainda o mesmo valor médio do que o dos homens. Todas essas justificações mascaram a intenção essencial: a de diminuir os salários de ambos pela força da lei da oferta e da procura e a de a mulher poder ter tarefas domésticas (que o próprio sistema capitalista pretende que continue a ter), sendo que está o capital em melhores condições de a controlar. O capital pode optar por não contratar mulheres durante o tempo que lhe apetecer, mas as mulheres não podem optar por não trabalhar pelo tempo que lhes apetecer.

Esta integração da mulher no processo produtivo de forma directa acarretou a duplicação das suas tarefas, pois somou às tarefas domésticas, as tarefas laborais. Por que motivos, contudo, é tradicionalmente a mulher a realizar as tarefas domésticas? Em primeiro lugar, porque é a mãe que pode realizar um conjunto restrito de tarefas que dizem respeito à gravidez e ao cuidado das crianças nos primeiros meses de vida. Em segundo lugar, porque sendo o seu valor horário inferior ao do homem, é natural que se coloque o trabalho caseiro no plano do valor horário mais depreciado. Esta imposição draconiana, machista e patriarcal, não pode ser vencida – a não ser nos casos pontuais em que a cultura, consciência e sensibilidade próprias de cada casal o permita – enquanto não for vencida a questão mais funda da valorização diferenciada do trabalho do homem e da mulher. Tendo em conta a natureza do capitalismo, tal desígnio implicará certamente a superação do modo de produção capitalista e a construção de uma sociedade em que não exista qualquer descriminação salarial ou de qualquer outra ordem entre o homem e a mulher.

Foi este enorme parêntesis necessário na nossa questão de “género” apenas para no-lo reconduzirmos a ela. Tendo sido a relação social capitalista a criar a expectativa comportamental da mulher e do homem, por motivos eminentemente económicos, qualquer aproveitamento do conceito de “género” no contexto da revolução ou do movimento revolucionário, é forçosamente no sentido da sua destruição e não no da sua consolidação. Não é razoável que, independentemente do meu comportamento, gosto ou orientação sexual, eu me identifique com um género – qualquer que ele seja, porque esse género é em si mesmo uma construção conservadora.

Tomemos por exemplo um rapaz, ou um homem, que se identifica sexual e fisicamente como homem e que até absorveu os comportamentos de “género” expectáveis. É, na linguagem aplicável, um homem cis. Eu próprio posso ser dessa forma identificado. Significa isso que eu tenho orgulho do papel de “género” que a classe dominante determinou para mim? Significa isso que eu me identifico com o papel do homem na sociedade capitalista? Se eu me identifico com um género, qualquer que ele seja, estou a integrar o conceito na minha análise, estou a assumir que há comportamentos de homem e comportamentos de mulher, ou que existem papeis sociais que podem ser atribuídos a alguém em função de uma característica física ou de uma qualquer questão de identidade. A luta desenvolvida em torno de um conceito apropriado, para um resultado absolutamente diferente do que inicialmente se preconizava, encaminha uma boa parte das preocupações do proletariado para becos sem saída, para o terreno estéril da luta pela luta e para a individualização e atomização dos movimentos sociais.

Além disso, a folclorização do movimento feminista, a sua conversão em misândrico e a conceptualização do “género” como um direito fundamental em contradição com o sexo como um atributo, colocam a mulher, principalmente a mulher pobre ou a mulher trabalhadora num plano de secundarização. Os problemas da mulher são substituídos pelos problemas do “género” feminino, os problemas reais do salário mais baixo, do desemprego, dos direitos laborais, são substituídos por acesso a casa de banho pública ou escolar, e etc.. Os problemas da mulher não são de género, são de classe.Numa perspectiva desprendida da crítica dominante, impõe-se ao feminismo e aos revolucionários que lutem contra os papéis de género. Que possamos juntos abolir todas as divisões entre homem e mulher com a unidade entre os trabalhadores para a revolução socialista.

6 Comments

  • sara ferreira

    29 Maio, 2020 às

    E ir ler a Butler e outra coisas "fora da caixa" para perceber o porque do nao binarismo de genero…e tirar a cabeça da areia…aprender coisas novas…toda uma area das ciencias sociais…estudos de genero…as pessoas trans existem…e e por elas que é importante tambem falar de genero…e deixar de colocar pessoas e nao homens e mulheres em caixinhas…

  • Jose

    17 Janeiro, 2020 às

    Donde se prova que a esquizofrenia das doutrinas de género ainda pode ser elevada a um mais alto patamar de aberração mergulhando-a no caldeirão marxista e trazendo à luz do dia uma igualdade macho/fêmea por fim libertada de hormonas diferenciadoras.

    • Nunes

      19 Janeiro, 2020 às

      Zé Picolho!

  • Francisco

    17 Janeiro, 2020 às

    Até que enfim. Uma martelada na imbecilidade contagiante que se tem disseminado como uma praga a propósito deste tema. Sou pai de filho e filha e quero para ambos o mesmo Mundo em que o respeito pelo outro e pelas diferenças que lhe são características, seja o resultado consequente desse processo de transformação profunda, em cujo epílogo o modo de produção capitalista seja, finalmente, deposto. O resto – desculpem-me a franqueza – é folclore.

  • j.

    17 Janeiro, 2020 às

    Texto corajoso, dada a atual onda de "politicamente correto" promovida pela ONU e outras instâncias internacionais.

    De um ponto de vista materialista, mais do que impor quotas em cargos de topo para mascarar um bocadinho estatísticas de desigualdade salarial, uma política consequente de «igualdade de género» passaria pela aposta na valorização salarial de profissões tradicionalmente femininas (por questões de socialização) e criação de algum bónus compensatório na progressão na carreira das mulheres envolvidas em trabalho reprodutivo.

    Outra questão (colateral e ultra-minoritária): é provável que a agenda farmacêutica e médico-cirúrgica de medicalização de crianças e adolescentes "género-desviantes" que tem causado polémica em contexto anglo-saxónico nos próximos anos chegue cá. Ciência, nalguns casos, ao nivel da das lobotomias praticadas no século XX… https://twitter.com/transgendertrd

  • Unknown

    16 Janeiro, 2020 às

    Concordando no conjunto da critica ao papel anti-revolucionário das actuais campanhas políticas de género, gostaria de salientar contudo que o processo de divisão entre homem e mulher, nas formas e nos processos de trabalho ao longo dos diferentes modos de produção, é anterior ao modo de produção capitalista. Antes da divisão social do trabalho, já existia a divisão sexual do trabalho. E em última análise, mesmo que derrubado o capitalismo e os seus mecanismos de exploração, ainda teríamos de lidar com esta primitiva discriminação. Essa seria a última barreira que nós, revolucionários, teríamos de abater.

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