Quando era puto, não havia muito que fazer. Enquanto os nossos pais e avós trabalhavam nas oficinas, na construção e nas fábricas, sobrava tempo para intermináveis jogos de futebol. As balizas do ringue não duraram muito. A partir desse dia passámos a usar pedras ou as próprias mochilas quando regressávamos da escola. Às vezes, quando entendíamos que tínhamos direito aos nossos mágicos duelos em campos mais apropriados, arriscávamos. Atravessávamos um descampado, onde nos duros tempos da heroína se injectava toda uma geração, fugíamos duma matilha de cães que guardava várias oficinas e saltávamos um muro que protegia o ringue de uma associação.
Às vezes, tropeço em análises exageradas sobre a tragédia que representa o futebol para certo tipo de intelectuais. Não é tão simples. Os mecanismos que o capitalismo usou para transformar o desporto numa arma de alienação não são diferentes dos que usa para fazer de outras esferas da nossa vida uma arma ao seu serviço. Contudo, acreditar que a maioria dos portugueses que festejam a vitória das suas equipas são politicamente descerebrados é escamotear o facto de que boa parte dos portugueses, entre os quais muitos adeptos de futebol, participaram nas manifestações que trouxeram para as ruas gente como há muito não se via.
Em grande parte do mundo, o futebol é o desporto dos pobres. Nenhuma das minhas escolas, primária, preparatória, secundária e superior, tinha pavilhão coberto. No meu bairro, não havia piscinas, campos de ténis ou pistas de atletismo. A única modalidade que parecia fazer sentido era o corta-mato. Até partirmos alguma janela, havia espaço em todos os lugares para que a bola rolasse entre os nossos pés. E o facto é que o futebol se popularizou tanto entre a classe trabalhadora que às vezes há quem se esqueça que este desporto já era de massas antes de se tornar presa do capitalismo.
O mundo do futebol moderno destrói aquilo que devem ser os princípios desportivos e não vê mais do que o negócio. Os principais clubes são enormes pólos de lavagem de dinheiro e vivem nos tentáculos do poder económico e político. A corrupção transborda por todas as partes. Grande parte dos árbitros profissionais manipulam a realidade a troco de dinheiro e boa parte dos jogadores vive para os patrocínios. É um mundo que serve muitas vezes como ferramenta de alienação. Mas é tremendamente errado arrumar tudo o que diz respeito ao futebol na mesma gaveta e tirar conclusões genéricas
Por exemplo, ninguém tem dúvidas sobre o papel que representa a FIFA no negócio que é hoje o futebol. Neste sentido, a decisão do governo brasileiro de levar a cabo a organização do Campeonato do Mundo de Futebol é obviamente questionável. Que os trabalhadores e o povo se perguntem sobre a oportunidade de se construírem estádios em vez de infraestruturas que correspondam às necessidades sociais é legítimo. Mas, nessa contradição própria em que se geram os protestos no Brasil, com justas reivindicações mas também com aproveitamento da direita, há que olhar com profundidade.
Há dias, na inauguração do evento, a presidente brasileira foi vaiada por um estádio em que as bancadas pareciam europeias. A maioria da assistência era branca quando boa parte da população é negra ou mestiça. E, se olharmos para origem dos jogadores da maioria das selecções, apercebemo-nos de que são filhos da classe trabalhadora. Os subúrbios são os viveiros do futebol. Mas não esqueçamos que às grandes equipas e aos salários obscenos só chega uma ínfima parte dos que desde pequenos driblam para isso.
Também não esqueçamos todos aqueles que sendo ícones do futebol nunca renegaram as suas origens. Eric Cantona que sempre se mostrou contra o capitalismo, Diego Armando Maradona que nunca hesitou em apoiar as revoluções cubana e bolivariana, Oleguer Presas, ex-defesa do Barcelona, que ficou debaixo do fogo mediático depois de apoiar a greve de fome de um preso político basco, Zanetti, que financiou várias vezes o EZLN, ou Cristiano Lucarelli, que nunca mais jogou na selecção depois de ter festejado um golo exibindo o Che Guevara. Há muitos jogadores que fora dos campos dão a cara por um mundo mais justo.
Contudo, por vezes, os próprios jogos podem assumir dimensões políticas pelo embate que representam. Quando Maradona marcou golo com a mão, estava a violar as regras do futebol. Mas estava a dar uma chapada no imperialismo britânico. E o que acontece fora do campo também importa. A vitória esmagadora da Holanda sobre a Espanha foi festejada na Corunha, em Bilbau e em Barcelona. Os mesmos jogadores chilenos que há poucos anos entraram em campo com os capacetes mineiros derrotaram a Austrália com o apoio dos trabalhadores das minas. Esta noite, milhares de guerrilheiros colombianos vão estar à escuta das transmissões de rádio para saber o resultado do jogo contra a Grécia. E quem é que de nós é capaz de ficar triste se Portugal derrotar as selecções da Alemanha e dos Estados Unidos?
Eu não deixo de ler só porque o mercado livreiro está dominado por editoras que privilegiam certo de tipo de literatura. Eu não deixo de ouvir música só porque a música de que gosto não passa na rádio. Há milhões de adeptos de futebol que lutam pelo fim do desporto enquanto negócio e arma de alienação. E um dia, no mundo melhor por que lutam também os que gostam de futebol, haverá espaço para desfrutar enquanto praticantes e enquanto adeptos. Sem mochilas a fazer de baliza e com o acesso ao desporto como direito conquistado e acessível a toda a população. Como em todos os processos revolucionários, é provável que não se cumpram as regras que eles mesmo impuseram ao jogo da exploração e miséria em que vivemos. Mas será um golo tão ou mais festejado que o que Maradona marcou com a mão.