Great Reset ou Grande Salto em Frente?

Nacional

O great reset, como lhe chamam os actuais teóricos e decisores do capitalismo global, é apresentado como a saída para a encruzilhada em que a humanidade se encontra perante as suas supostas incapacidades e perante as limitações do planeta em que vive. Até David Attenborough faz documentários para a Netflix em que nos alerta para os problemas da devastação da biodiversidade, relacionando-a com o número de seres humanos numa óptica verdadeiramente malthusiana, a juntar a toda a lavagem que sofremos diariamente, desde a escola à comunicação social em torno de erradas soluções para problemas reais.

Partindo de problemas que se tornam cada vez mais evidentes e gritantes, o capitalismo a uma escala global mas altamente centralizada, lança soluções erradas. Claro que os centros de decisão capitalista não falam a uma só voz, mas ainda assim, à medida que a concentração monopolista avança, também o comando se torna cada vez mais coordenado.

Os centros de decisão são conhecidos, independentemente do papel de cada um. Sabemos da existência de clubes de elite, de sociedades secretas, mas podemos até focar-nos no fórum económico mundial, tão conhecido e sem necessidade de se esconder, pois é onde os decisores do capitalismo apontam as suas estratégias para concretizar os seus objectivos, adaptando-as ou travestindo-as de respostas a problemas que eles próprios criaram.

A desigualdade, a fome, a pobreza, a concentração de recursos, a exploração de recursos minerais e outros recursos naturais, a predação acelerada do planeta, a poluição hídrica e atmosférica, as mortes por doenças curáveis, as alterações climáticas, a guerra, são alguns dos problemas criados pelo desenvolvimento capitalista e pela alimentação da máquina de lucro. Claro que não são dadas a todos estes problemas as mesmas atenções mediáticas e nem todos desempenham o mesmo papel na campanha mundial de ofensiva ideológica. A guerra, por exemplo, é raramente abordada. E os restantes, mesmo os que preenchem o centro do discurso dominante, são apontados como problemas, com base na realidade observada, mas apenas para alimentar novos filões de mercado, o aprofundamento da concentração da riqueza e a preservação do funcionamento do capitalismo na sua fase avançada, muito próxima de um imperialismo globalizado.

Por exemplo, a fome tem como solução a caridade, assim permitindo que tudo fique na mesma e que até a comida que é enviada para os pobres resulta da boa vontade dos remediados ou dos restos dos bailes e galas de beneficência dos filantropos modernos. As doenças no hemisfério sul são apresentadas praticamente da mesma forma. A devastação do mundo e das suas florestas não era suficiente preocupação enquanto resultava apenas da intervenção dos europeus no continente africano ou dos norte-americanos no sul do continente. Agora que a destruição dos recursos que há muito desertificou e destruiu importantes partes dos continentes do hemisfério sul é sensível no hemisfério norte, o capitalismo percebeu que também pode usá-la como instrumento para a imposição da sua agenda. Para cada um dos reais problemas que o planeta e a humanidade enfrentam, o capitalismo e os seus centros de decisão, apresentam uma solução que apenas resolve os obstáculos que o problema coloca ao capitalismo e à continuidade da acumulação do lucro.

Por exemplo, no caso das alterações climáticas, são conhecidas as fórmulas: criar uma bolsa especulativa de licenças de emissão de gases com efeito estufa, um primeiro ensaio para a privatização da atmosfera, principalmente do oxigénio atmosférico. Atrás dessa criação que não resolveu nenhum problema foram apresentadas as novas soluções energéticas que, na realidade, persistem na destruição do planeta porque persistem no objectivo fundamental de gerar rendimento para a classe dominante. O planeamento e ordenamento das actividades e da economia, a sua adaptação às reais necessidades dos seres humanos, tem efeitos muito maiores do que a simples utilização e substituição da energia. Por exemplo, trocar os transportes individuais por transportes colectivos, tem impactos muito superiores na emissão de poluentes ou na exploração de recursos do que a substituição de transportes individuais a diesel por transportes individuais eléctricos. A máquina capitalista do lucro, todavia, não pode dar-se ao luco de abdicar dos importantes lucros da indústria automóvel, nem pode abdicar da atomização social que a introdução do automóvel representou na vida das pessoas e nos benefícios que essa atomização constitui para a classe dominante.

Da mesma forma, alterar a geografia das cadeias logísticas representaria muito melhor gestão dos recursos do que a substituição do tipo de agricultura ou do grau de automação da produção, na medida em que o transporte de alimentos e bens através do globo para satisfazer os interesses do lucro acrescenta um custo ambiental a cada produto, que reverte apenas para mitigar a diminuição tendencial da taxa de lucro e em nada beneficia o verdadeiro produtor: o trabalhador. Por exemplo, um trabalhador num país do sudoeste asiático não será premiado de forma alguma por o produto que compôs ser vendido nos EUA ou na UE, mas o grupo capitalista a quem esse trabalhador vende a sua força de trabalho depreciada combate a diminuição da taxa de lucro ao vender em maior quantidade. Claro que, mesmo a solução da sobreprodução como resposta a esse problema tem problemas que já conhecemos, pois gera crises constantes de sobreprodução que há muito tornam absolutamente insustentável o capitalismo, sendo que, a cada crise se torna mais clara a sua dependência dos recursos públicos dos vários estados e do trabalho dos trabalhadores cada vez mais explorados.

São apenas alguns exemplos de falsas soluções para problemas reais. Deixar as soluções nas mãos dos que criaram os problemas é uma contradição clara perante os interesses daqueles que são verdadeiramente afectados por esses problemas. O chamado great reset, assim apresentado pelo fórum económico mundial, tem como objectivo anunciado a reconfiguração de tudo, menos do sistema económico e do modo de produção. Como?

O great reset, cujos principais planos estão disponíveis no site, é muito mais do que um conjunto de intenções e representa muito mais do que uma reconfiguração. Na verdade, o modelo económico actual não só é preservado, como aprofundado. Ou seja, não é um reinício de sistema – o que já de si não resolveria nada – mas um grande salto em frente no domínio dos monopólios perante os recursos e as populações. O surgimento de um vírus que atingiu proporções pandémicas vem apenas servir de alibi para uma aceleração de planos que vinham a ser postos em marcha desde há muito. O arrefecimento da produção mundial, com o agravamento simultâneo da concentração dos bens produzidos e da riqueza deles proveniente, não resolve nenhum dos problemas da humanidade considerada como a soma dos seus indivíduos tidos em igualdade, antes tenta resolver os problemas da classe dominante, agravando os mecanismos de controlo sobre os trabalhadores, contribuindo para o escoamento de produtos e stocks, aliviando a diminuição da taxa de lucro, sem que ainda assim, a inverta. Ao mesmo tempo, a pretexto da pandemia e dos problemas ambientais e económicos, a classe dominante apresenta um plano de suposta reestruturação económica que mais não é senão a alteração dos meios técnicos e materiais através dos quais é realizada a exploração das camadas trabalhadoras.

No entanto, os grandes grupos económicos estão confrontados com uma situação que não deixa de apresentar dificuldades: o passo em frente que pretendem dar implica recursos inimagináveis e um risco de negócio que não estão disponíveis para correr. A apresentação do grande reinício é, por isso mesmo, apenas um grande assalto aos estados e aos seus mecanismos de financiamento público, de segurança social e de outros recursos, onde se incluem os naturais. A chamada transição energética ou a criação das chamadas cidades inteligentes visam comprometer os estados com o financiamento da alteração das tecnologias utilizadas pelos grupos económicos para obter lucro e em nenhum momento se fala de essa transição ocorrer sob comando público e democrático, aliada à capacidade criativa das massas e à democratização da decisão e do usufruto. Pelo contrário, todas as soluções são montadas com base nos grandes grupos económicos já praticamente monopolistas. Ou seja, os grandes grupos económicos pretendem operar alterações qualitativas nos meios de produção, sem alterar o fundamento das relações das forças produtivas, principalmente sem sanar a contradição fundamental entre trabalho e capital, mantendo o capital estrita e crescentemente nas mãos de companhias privadas. Podemos utilizar vários exemplos, sendo o da substituição de viaturas movidas a motores de combustão por motores eléctricos novamente um óptimo: a indústria automóvel, depois de décadas de imposição de uma agenda camuflada de ambientalismo, pretende financiar-se com recursos públicos e obter carta branca para a exploração de recursos naturais de forma a poder manter a sua máquina a funcionar exactamente nos mesmos termos.

Objectivamente, a manutenção do transporte individual como meio de transporte dominante representa um problema independentemente da energia que alimenta o transporte. A sobreprodução de viaturas consome mais recursos do que os disponíveis e implica a mobilização e inovação de capitais que os grupos monopolistas não pretendem investir e, claro, mesmo que investissem, não solucionaria o problema fundamental que é o da exploração do trabalho e o da assimetria inerente e insanável resultante dessa exploração. Mesmo em casos mais pontuais, como a produção de vacinas para o SARS-Cov-2, não exalta nenhuma benevolência dos grupos capitalistas que as desenvolveram pois que é evidente o comprometimento de recursos públicos no financiamento à inovação e à aquisição a que se alia a exploração do trabalho científico que, na verdade, produziu as vacinas. O modelo privado dos meios de produção fundamentais para o desenvolvimento da humanidade está, pois, esgotado.

Muitas das transformações de que a humanidade precisa ocorrerão independentemente do modo de produção dominante. A economia terá de se reorganizar, independentemente da tecnologia utilizada e, certamente, muita da tecnologia desenvolvida durante a fase capitalista da humanidade será fundamental para a superação do capitalismo e para a construção de um mundo socialista sem exploração do Homem pelo Homem. Todavia, se isso é certo, é igualmente certo que se essas transformações ocorrerem, como até aqui, sob domínio da grande burguesia, contribuirão para a consolidação desse domínio através de todas as formas ao alcance dessa classe, incluindo através da violência sobre as restantes camadas da população.

O grande reinício, apresentado como um passo no sentido da melhoria das condições de vida, não é mais do que um passo na melhoria das condições de vida das elites, alheando cada vez mais seres humanos dos benefícios do desenvolvimento tecnológico. O momento actual mostra essa tendência com particular intensidade: as paragens de produção e de distribuição, afectando especialmente as dimensões da pequena economia, dos artesãos, dos pequenos empresários, das cooperativas, e mesmo de algumas grandes empresas menos bem posicionadas, determina a substituição ou absorção de inúmeras empresas por outras maiores, num salto de consolidação de monopólios sem precedentes, aglutinando desde serviços locais a bancos, até que eventualmente apenas um grande consórcio (um trust, como previsto por Lenine) domine praticamente todas as dimensões da economia, com custos para as restantes dimensões da vida dos seres humanos: a vida cultural, a vida social e a vida política.

Quanto mais cedo o proletariado se lançar no domínio da economia, através da política, mais possibilidades terá de construir um mundo liberto da exploração a que é sujeito antes de serem pagos os custos de um novo assalto monopolista à riqueza do planeta e ao trabalho de milhares de milhões de seres humanos, muitos deles desnecessários para o plano de grande reinício que a burguesia preconiza. A construção desse mundo é a única barreira que nos separa da barbárie e do extermínio de massas. O nosso trabalho é precisamente esse: contribuir para a constituição do proletariado como classe organizada, além fronteiras, mas de dentro para fora e assim ganhar as alavancas que o coloquem na frente de decisão de como e ao serviço de quê e de quem serão utilizados os fantásticos recursos hoje potencialmente à disposição dos seres humanos.

2 Comments

  • Maria Augusta

    10 Fevereiro, 2021 às

    Não podia estar mais de acordo: é fundamental «a construção de sistemas de transição e alternativos». Quiçá ruturas assumidas. Para isso, a meu ver, acompanhando tantos outros, é fundamental assumir que estamos perante novos paradigmas e que o designado DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ( igual a SUSTENTABILIDADE ou VERDE) não são apenas «palavras». São conceitos a que se seguem técnicas e ferramentas. E que têm a ver com todos – ricos e pobres. Como a COVID. Bem sabemos, não afetam todos de igual maneira.De há muito que os teóricos e os práticos do capitalismo que deram por isso, e não param de ensaiar novas formas de fazer. Em dado momento «teórico» muito respeitado afirmou: «o capitalismo está sitiado». A criação da WBCSD, onde Great Reset, é parte disso. Pelo lado «dos trabalhadores» e seus representantes, a coisa está lenta … De pessoas que muito respeitamos não é difícil ouvir ainda: isso são modas…
    Tenho um blogue, onde vou dando conta destas coisas …, de maneira «solta» … ORGANIZAÇÕES VERDES –
    https://verdesxxi.blogspot.com/ . E até um outro: Em Cada Rosto Igualdade – https://emcadarostoigualdades.blogspot.com/

  • Sérgio Montez

    9 Fevereiro, 2021 às

    “”O nosso trabalho é precisamente esse: contribuir para a constituição do proletariado como classe organizada, além fronteiras, mas de dentro para fora e assim ganhar as alavancas que o coloquem na frente de decisão de como e ao serviço de quê e de quem serão utilizados os fantásticos recursos hoje potencialmente à disposição dos seres humanos.””

    De acordo.

    Mas isso exigia já hoje dos Comunistas e outros democratas tambem a construção imediata de sistemas de transição e alternativos cooperativos e sociais de incremento á soberania alimentar, á produção e cadeias curtas de troca e escoamento locais, moedas locais e sociais, respostas imediatas para os soluços e crises que a fase me monopólios impõe aos trabalhadores e outras proles…
    Não será possível fazer nenhuma revolução ou sequer criar a alteração das condições objetivas e da correlação de forças sem soberania alimentar, sem matar a fome a quem tem fome. Inclusive ideologica e socialmente. Temos fome de ser seres pensantes actuantes e agentes sociais nas nossas comunidades.

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