Greve prisional nos EUA contra a escravatura moderna

Internacional

No 45º aniversário do levantamento prisional em Attica, iniciou-se ontem uma greve nacional de presos em mais de 24 estados dos EUA, contra comida e cuidados de saúde inadequados, condições de sobrelotação, pressão e isolamento prolongado, e o ciclo do próprio sistema criminal que cria um sistema de escravatura moderna. Os promotores, que incluem o Support Prisoner Resistance, o  Incarcerated Workers Organizing Committee, e o Free Alabama Movement, apelam ao fim da escravatura na América, alertando não só para as condições dentro das prisões, mas para todo o sistema repressivo racista e de classe, desde a ligação entre punição nas escolas e a criminalização juvenil (school to prison pipeline), ao quotidiano terror policial nas cidades, o enviesamento racial da polícia e sistema penal, a falta de apoio jurídico, as fianças proibitivas, as penas injustas, os controlos após a libertação, etc.

Os EUA tem a maior população prisional do mundo (mais de 2 milhões em prisões para adultos, mais de 50 mil em instituições juvenis; aproximadamente um quarto da população prisional mundial e o equivalente às populações prisionais da China e Rússia juntos, os países com a 2ª e 3ª maiores populações prisionais) e a 2ª maior taxa de encarceramento do mundo (698 presos por cada cem mil habitantes, apenas atrás das Ilhas Seicheles; China e Rússia ocupam respectivamente o 134º e 10º lugar).[ver] Cerca de 1 em cada 32 pessoas estão encarceradas, com pena suspensa, ou em liberdade condicional (dados de 2006 do Dep. Justiça).Quando repartido por grupo étnico, as taxas de encarceramento são ainda mais chocantes: 360/100,000 brancos, 966 para latinos e 2,207 para negros (dados de 2010, ver), isto é, a taxa de encarceramento de um Estadunidense negro é 5-6 vezes maior que a de um branco; em cinco estados a desproporção é de 10 para 1. Estima-se que um terços dos negros nascidos em 2001 irá para a prisão. [ver]

As razões apontadas para o enorme aumento de população prisional nos EUA nos últimos 40 anos são a aplicação de penas mais longas (incluindo a pena obrigatória de 25 anos para quem é condenado pelo seu 3º crime) e a intolerante criminalização do uso e tráfego de drogas. A «Guerra à Droga», iniciada com o Presidente Nixon foi intensificada sob o Presidente Reagan.  Em 1990, cerca de 22% dos presos estavam encarcerados por crimes relacionados com droga. As regras impostas por Reagan tinham um implícito enviesamento racial. O Acto de Anti-Abuso de Droga, de 1986, impunha a mesma pena obrigatória de 5 anos por posse de 100 vezes mais de cocaína que de crack – a forma da droga predominante entre as comunidades negra e latina, e entre as mulheres, significativamente afectadas por estas leis: desde 1986, a taxa de encarceramento de mulheres aumentou 400% (e 800% entre mulheres negras). As penas por posse de droga são também responsáveis pelo facto de cerca de 50% dos presos estaduais e 90% do presos federais estarem encarcerados por crimes não-violentos.

O imenso aumento da população prisional, em paralelo com o o domínio de políticas neo-liberais de redução de despesa pública e privilégio de soluções privadas, viu o aumento de prisões privados com fins lucrativos. Todas as perversões de cortes de custos que poderíamos esperar de tal arranjo têm sucedido: prisões sobrelotadas, comida de baixa qualidade, artigos vendidos aos presos a preços inflacionados, falta de cuidados médicos, guardas prisionais insuficientes, mal treinados e mal pagos, etc. Uma investigação clandestina de um reporter numa prisão privada relata na primeira pessoa o ridículo do processo de recrutamento e treino dos guardas, e as condições dentro da prisão, a violência, abuso e injustiça. [ver]

Mas os abusos vão ainda mais longe: mais presos significa mais lucros, logo as corporações que gerem as prisões privadas procuraram garantir taxas de ocupação elevadas, quer através dos acordos de parceria público-privada que são celebrados com os Estados (que lhe garantem taxas de ocupação de 90-100% em 4 Estados), quer subornando juízes para encaminharem presos para as suas prisões.[ver] Em 2009, dois juízes do Condado de Luzerne, no Estado de Pennsylvania, foram condenados por terem recebido quase USD$2.6 milhões em troca de enviar menores para uma prisão privada, afectando mais de cinco mil menores. Mais de 50% das crianças que compareceram perante o Juíz Ciavarella não tinham representação legal. [ver]

A indústria das prisões com fins lucrativos é um negócio de 70 mil milhões de dólares anualmente e que gasta US$45 milhões para fazer lobby. Não admira que entre 1990 e 2009 o número de presos em prisões privadas tenha aumentado 1600%! Mais de metade dos imigrantes ilegais detidos nos EUA encontram-se em prisões privadas, proporcionado um lucro de US$5.1 mil milhões.[verE como em tantos outros contextos de privatizações, também estas instituições privadas, que proporcionam enormes lucros aos seus gestores, não poupam dinheiro ao Estado.[verEm Agosto, o Departamento de Justiça dos EUA finalmente declarou este tipo de prisões uma experiência falhada, e vai terminar as prisões federais privadas, o que deixa porém as prisões estaduais. [ver]

Colocar os presos a trabalharem é comum, e em si não é negativo. É uma forma de os manter ocupados, fazer formação profissional importante para quando forem libertados, e deve constituir também uma forma de ganharem algum dinheiro, para comprar comida, artigos e cuidados médicos (já para não falar na possibilidade de terem algum dinheiro para a transição entre a prisão e a vida exterior). Mas os presos não são pagos um salário mínimo (US$7.25/hora, desde 2009): consoante o estado um preso pode receber desde US$1.15/hora até… nada. E em muitos casos não podem recusar-se a trabalhar – podendo ser punidos com aumentos de penas ou tempo na solitária – sendo também punidos por chegar atrasado ou faltar se doentes.[ver] Metade do ganham pelos presos é retido pela prisão para suportar custos, e o restante é geralmente gasto pelo preso em consumíveis essenciais (papel higiénico, produtos de higiene feminina, etc.), cuja venda é controlada pela prisão e vendidos a valores correspondentes a muitos dias de trabalho.

Mas os presos não trabalham só para a prisão realizando serviços essenciais como limpeza, lavandaria, ou manutenção. São também vendidos para empresas externas, “fazendo uniformes para a McDonald’s, call-centers para a AT&T ou preparando queijos artesanais vendidos nas lojas da Whole Foods”.[verA Federal Prison Industries (UNICOR), que usa trabalho penal fornecido pelas prisões federais, apresentou US$472 milhões de lucros em 2012 pelos produtos e serviços fornecidos à conta da exploração de presos. Os lucros combinados de todas as prisões federais e estaduais superou US$2 mil milhões.

Os protestos realizados ontem vêm no seguimento de outros realizados já este ano. Em Março, milhares em prisões em Michigan efectuaram uma greve de fome depois de terem sido servidos carne não refrigerada pela empresa de catering, a Aramark Correctional Services, e da empresa contratada para a substituir, a Trinity, lhes ter servido porções pequenas de uma comida aguada. A mesma companhia suscitou um protestos na Georgia, onde os presos estavam a ser subalimentados, levando um preso a comer pasta de dentes. Em Maio, centenas de presos em várias prisões do Alabama recusaram-se a trabalhar. Em Junho decorreram greves de fome em prisões no Nevada, Ohio e Wisonsin. Os protestos dentro das prisões têm sido acompanhados de protestos de solidariedade no exterior. [Para mais uma lista mais completa de eventos ver aqui.]

Kinetik Justice, co-fundador do Free Alabama Movement, um dos organizadores da greve prisional de 9 de Setembro, em solitária há 29 meses na Holman Correctional Facility por ter organizado um protesto semelhante em 2014, resume assim as razões da convocação deste novo protesto:

«Estas greves são o nosso método de desafiar o encarceramento em massa. O sistema prisional é a continuação do sistema esclavagista, que em todas as entidades é um sistema económico. Paras as reformas e mudanças pelas quais lutamos, temos apelado através dos tribunais. Tentámos contactar os nossos legisladores. Mas não temos tido qualquer recurso. Entendemos que o nosso encarceramento é sobre trabalho e o dinheiro gerado através do sistema prisional, por isso nos temos organizado em torno do nosso trabalho, usando-o como o meio e método para reformar o sistema prisional.»

* Autor Convidado
André Levy