Guterres, a Sérvia, a NATO e a ONU

Internacional

O governo PS assumiu a candidatura de António Guterres ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas como um projecto nacional para o qual mobilizará os seus esforços diplomáticos. Calculo que a direita fará deste tema uma boa oportunidade para sublinhar o seu “sentido de Estado” e a sua capacidade para “assegurar consensos”.

A candidatura fará as delícias dos comentadores do regime, que sublinharão o espírito humanitário do ex-Alto Comissário da ONU para os refugiados. E eu não perderei a oportunidade para lembrar 1999 e o papel desempenhado por Guterres e pelo seu governo num dos momentos-chave de descredibilização e secundarização do papel da ONU no plano da segurança internacional. Refiro-me à agressão da NATO à Jugoslávia, lembram-se?

Após 1989 a Europa conheceu uma série de processos políticos a leste que determinaram uma reconfiguração também geográfica no chamado “velho continente”. Antigos países deram origem a novos territórios independentes. Velhas alianças e amizades geraram novos focos de tensão. De entre os territórios mais afectados pelas tensões pós-89 e pós-91 a Jugoslávia foi aquele que viveu o processo mais conturbado, com uma série de guerras consecutivas em dois períodos praticamente consecutivos (1991-1995 e 1998-1999).

As guerras jugoslavas estão explicadas em detalhe na obra “Da Jugoslávia à Jugoslávia”, de Carlos Santos Pereira, cuja leitura se aconselha vivamente. Quem o fizer compreenderá aliás o papel instrumental que os conflitos 1991-1995 primeiro e a agressão da NATO aos sérvios e montenegrinos desempenharam na afirmação dos Estados Unidos da América como polícia do mundo e da NATO como se braço político-bélico preferencial numa estratégia de afirmação como potência dominante num mundo unipolar em recomposição pós-dissolução da URSS e do campo socialista saído da II Guerra Mundial. A guerra da Sérvia/Kosovo foi aliás um momento particularmente relevante neste processo já que foi o primeiro momento de intervenção directa e declarada da NATO fora do seu âmbito geográfico e em clara violação do direito internacional, sem mandato da ONU e contra os próprios estatutos da organização.

A agressão da NATO à Jugoslávia fez-se fundamentalmente com sacrifício da população civil e de infra-estruturas fundamentais do país. A ideia da NATO foi desde o primeiro momento vergar em definitivo Sérvia – parceiro histórico da Rússia nos Balcãs –, assegurando o desmembramento do que restava da antiga Jugoslávia titista e criando novos territórios fiéis à Aliança, mais tarde incorporados na sua estrutura política e militar (casos da Croácia e da Albânia, país que mais influencia o Kosovo independente, saído do conflito de 1999).

A guerra de 1999 foi e é muito dura para sérvios, montenegrinos e kosovares. A utilização de munições de urânio empobrecido por parte das forças da NATO determinou o aumento exponencial dos casos de cancro na região. A guerra ainda não terminou num território profundamente marcado pelo sofrimento imposto pelas bombas e pelas suas consequências duradouras. Estima-se que em 1999 tenham sido despejadas sobre território sérvio 15.000 toneladas de urânio empobrecido.

Ora, Guterres – o agora candidato ao cargo de secretário-geral da ONU – esteve para a guerra de 1999 como Barroso esteve para a segunda invasão norte-americana do Iraque. Juntou a sua voz à dos governos de maioria “social-democrata” que dominavam então a Europa. Esteve ao lado de uma agressão ilegal e injustificada a um país soberano que provocou uma imensa crise humanitária e o desmembramento do território jugoslavo. Ajudou a enterrar de vez a primazia da ONU como garante da paz e da segurança internacional, abrindo a porta ao chamado “novo conceito estratégico da NATO”, que alarga indefinidamente o perímetro geográfico e os pretextos políticos para a intervenção da “Aliança”. E posto isto não será despropositado colocar a questão: que condições tem Guterres para reerguer a ONU e relançar por exemplo a ideia dos chamados “Acordos de Helsínquia” destinados à criação de um sistema de segurança colectivo que priorize a paz e submeta os chamados “interesses estratégicos” das nações militarmente mais poderosas? Que legitimidade tem Guterres para promover no seio da ONU o processo de democratização da Organização que desde há muito se exige?

Apoiar Guterres com base na simples circunstância da sua nacionalidade é um disparate que o longo mandato de Durão Barroso na Comissão Europeia bem ilustrou. A questão não é de nacionalidade, de género ou etnia. É de convicções, credibilidade e compromisso com a Paz.