Os acontecimentos na Ucrânia estão a decorrer a grande velocidade, e tornam-se difíceis de entender. Este presente texto é uma tentativo de sumarizar alguns acontecimentos, e sistematizar as respostas a várias perguntas que me foram ocorrendo e suponho estarão a ocorrer a outros que se esforcem por acompanhar e fazer sentido dos acontecimentos. Não pretende ser exaustivo, nem uma análise política. Procurei limitar-me a listar alguns factos (com alguns comentários), consciente de que nem mesmo uma mera lista de factos é isenta de interpretação. A wikipedia providencia uma sumário relativamente imparcial dos acontecimentos quase diários do que chamam a (ver).
Para contextualizar há que recordar os acontecimentos das eleições presidenciais de 2004, cujos resultados foram contestados numa maré de protestos, conhecida como “Revolução Laranja”. Os primeiros resultados deram a vitória a Ianukovych, mas após acusações de fraude, o Tribunal Constitucional ordenou nova votação, que veio a dar a vitória a Iushchenko.
Em Dezembro de 2004, como resposta à crise gerada pela eleição presidencial, foram aprovadas emendas constitucionais por 90% do parlamento Ucraniano (a Verkhovna Rada), destinadas a diminuir os poderes presidenciais:
– deixou de poder nomear o Primeiro-ministro, passando esse poder para a Rada;
– o presidente apenas podia nomear o Ministro da Defesa e o M. dos Negócios estrangeiros;
– perdeu o direito de demitir membros do governo, mas ganhou o direito de dissolver o parlamento, e no caso de nenhuma coligação parlamentar ter condições de nomear um Primeiro-ministro, o Presidente teria poder para marcar novas eleições parlamentares.
As emendas constitucionais foram aprovadas com pouca consulta e discussão entre forças políticas, no contexto da crise política e da chamada Revolução Laranja, gerando alguma crítica interna e externa (incluindo do Parlamento Europeu). Elas entraram em vigor em 2006, mas em Outubro de 2010 (6 anos depois da sua aprovação) o Tribunal Constitucional da Ucrânia, que começou a avaliar as emendas em 2004 a pedido de uma coligação de 252 legisladores, considerou as emendas inconstitucionais e estas foram anuladas. O Comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa criticou a decisão, referindo alegações de que a demissão de 4 juízes do TC antes da decisão resultaram de forte pressão pelo executivo.
Em Novembro de 2013, começou a actual maré de manifestações, aplaudidas no Ocidente, a favor de uma maior aproximação da Ucrânia à União Europeia, por oposição à Rússia (a posição do Presidente Ianucovitch e seu Partido das Regiões). Nas semanas seguintes, os protestos passaram a ter um caracter mais geral de oposição ao Presidente e Governo. Tornou-se evidente a influência estrangeira, quer através dos oficiais políticos quer através da imprensa. No seio dos manifestantes tornou-se também claro a presença e influência de movimentos de extrema-direita, dispostos a escalar o confronto com as autoridades. No final de Novembro, houve carga policial na Praça da Liberdade, em Kiev, onde se concentravam muitos dos manifestantes. Seguiram-se, no início de Dezembro, vários motins de reacção ao abuso de força. Em Dezembro, decorreram várias manifestações pacíficas. No parlamento Ucraniano (a Verkhovna Rada)foi apresentada uma moção de censura contra o Governo do Primeiro-ministro Azarov, que não obteve os 226 votos necessários, maioria+1. A Rada tem 450 deputados. O segundo e mais recente governo de Azarov foi eleito, no final de 2012, com os votos favoráveis do Partido das Regiões e do Partido Comunista da Ucrânia (com 32 deputados, ~7%) e algumas outras forças (como Ucrânia – P’ra Frente). (O número exacto de deputados de cada partido tem variado um pouco devido a diferentes processos — ver; o número de deputados do Partido das Regiões variou entre os iniciais 185, a 204 no final de 2013, para 177 a 21 de Fevereiro, e 134 no dia seguinte; ~30%). A Rada inclui ainda o Pátria – Oposição Unida (inicialmente com 99 membros, entretanto reduzidos a 90), a Aliança Democrática Ucraniana para Reforma (acrónimo em inglês: UDAR; com 42 deputados), e a Svoboda – Aliança de Toda a Ucrânia (ou Liberdade), com 36 deputados, ~8%).
Os conflitos entre manifestantes e autoridades foram-se agravando, levando à aprovação de leis anti-protesto a 14 de Janeiro de 2014, mas tal teve o efeito de radicalizar os protestos. As manifestações tornaram-se campos de batalha. Ao todo estimam-se mais de 70 mortos, incluindo manifestantes e forças de autoridade, e mais de 700 feridos.
Em paralelo com os conflitos nas ruas, decorriam conflitos políticos na Rada, pancadaria entre deputados no plenário da Rada, e tentativas de intimidação (incluindo física) aos deputados por parte dos manifestantes. Decorriam também conversações entre a Presidência e Governo, por um lado, e membros da oposição e representantes dos manifestantes, por outro.
Na 6ª feira, dia 21 de Fevereiro de 2014, o Presidente e os líderes da oposição assinam um acordo estipulando que um novo governo de unidade nacional iria ser formado dentro de 10 dias. As negociações foram mediadas por representantes da UE: os ministros dos negócios estrangeiros da Polónia, França e Alemanha. O acordo incluía ainda a restauração da Constituição de 2004; reformas constitucionais a serem completadas em Setembro; novas eleições presidenciais até Dezembro de 2014; investigação da violência contra os manifestantes; uma nova comissão eleitoral e novas leis eleitorais. O acordo foi assinado, como testemunhas, pelos três ministros da UE. O mediador Russo recusou-se a assinar.
Ainda na 6ª é nomeado um novo ministro do interior interino, Avakov, para substituir Zakharchenko, demitido devido aos distúrbios. Avakov é um aliado da ex-Primeiro Ministra Timochenko, então líder do Pátria (e que por razões que me ultrapassam é referida nos média como a ‘Joana d’Arc Ucranian’). Timochenko havia concorrido nas eleições presidenciais, contra Ianucovitch, tendo ganho a primeira volta em Janeiro de 2010.A segunda volta foi altamente contestada judicialmente, mas a Comissão Eleitoral atribuiu a vitória a Ianucovitch, algo que Timochenko e seus apoiantes nunca reconheceram. Durante 2010, iniciam-se vários processos criminais contra Timochenko por corrupção e abuso de poder, incluindo a re-abertura de um caso de 2004 na qual Timochenko era acusada de tentar subornar juízes do Supremo Tribunal. Timochenko acabou por ser condenada e aprisionada, alegando tratar-se de um processo político e não jurídico. Em Novembro de 2013, encetou uma greve de fome que ganhou visibilidade. Mais tarde adoeceu e foi transferida para um hospital prisional.
No sábado de manhã, dia 22, as forças de segurança abandonam Kiev. De todo. A Praça da Liberdade enche-se de gente. Alguns generais afirmam que não obedecerão mais ordens que impliquem agir contra o povo. Não é claro para mim quais as alianças políticas destes generais pois embora digam que estão ao lado do povo, qual é o lado do povo, nesta situação?
Ainda nessa manhã, o presidente da Rada, Rybak demite-se (por razões de saúde?!). É substituído por Turchynov, outro aliado da Timochenko. Sob a nova presidência a Rada vota a restituição da constituição de 2004 e marca novas eleições (elementos que constavam no acordo da 6a feira com Ianucovitch). As emendas constitucionais de 2004 foram aprovadas num procedimento simplificado, sem decisão da comissão relevante, tendo sido votada no próprio dia 21 de Fevereiro, com os votos favoráveis do Partido das Regiões (140), Pátria (89), UDAR (40), PCU (32) e 50 independentes.
A Rada aprova ainda a demissão do Presidente Ianucovitch e a imediata libertação de Timochenko. Passado umas horas Timochenko discursa na Praça da Liberdade, numa cadeira de rodas. A Praça parece um concerto de rock, com palco e feixes de luz coloridas.
As medidas na Rada são aprovadas quase unanimemente, indicação da total perda de força política do presidente na Rada. Ainda me é difícil compreender tamanha unanimidade. Infiro que os deputados terão dado Ianucovitch por politicamente morto, e quiseram fugir dele o mais possível.
O paradeiro de Ianucovitch é ainda incerto, mas o novo Ministro do Interior já emitiu um mandato de captura. Outros ministros do governo de Ianukovich foram ainda demitidos entre sábado e domingo, incluindo o Ministro dos Negócios Estrangeiros, da Educação, e da Saúde. O parlamento discute a agora a possibilidade de outras reformas, incluindo a ilegalização do Partido das Regiões e o Partido Comunista da Ucrânia.
* Autor Convidado
André Levy