Aconselham-nos a ficar em casa. Vamos deixar de parte o julgamento sobre a adequação das medidas que estão a ser tomadas por governos em todo o mundo. Na verdade, não temos elementos para apurar da sua validade, não temos elementos científicos que nos permitam afirmar que são exageradas, que são insuficientes ou que são as certas. Apesar de sabermos que a política está submetida a interesses económicos e que, muitas vezes, tal significa desprezar a ciência, não temos elementos que autorizem efabulações ou teorizações da conspiração no que toca à crise em torno do Corona vírus e da doença que provoca, o Síndrome Agudo Respiratório Grave e que penaliza com mais intensidade as camadas mais fragilizadas da população um pouco por todo o mundo.
Actuar com cuidados de precaução e eventualmente de isolamento social não implica, porém, o alheamento do mundo, nem a quebra das relações sociais na sua totalidade. Pelo contrário, nestas ocasiões, a manutenção da cooperação e da solidariedade, de estado ou comunitárias, são fundamentais para a coesão e para a sobrevivência de uma boa parte de nós. Ao mesmo tempo, abdicar de direitos de participação e da intervenção do espírito crítico podem contribuir para avanços poderosos do imperialismo e do capital que serve.
Temos ouvido os profetas do colapso cataclísmico do capitalismo anunciar que o capitalismo não será o mesmo após esta crise, que o serviço nacional de saúde sairá reforçado, entre outras proclamações igualmente optimistas sobre os desfechos desta crise económica e financeira que estava latente na finança mundial e que pode precipitar-se com a agitação provocada pela pandemia de CoVID-19. Mas os desenlaces não serão evidentes.
Por um lado, países como Portugal, em que uma boa parte do tecido económico é constituído por micro, pequenas e médias empresas, serão fortemente afectados no seu produto e na capacidade de produção e distribuição. Ao mesmo tempo, países com um capitalismo profundamente desenvolvido e com economias assentes em monopólios podem assimilar todo o mercado queimado pelo CoVID-19. Ou seja, no médio e longo prazo, o grande capital pode utilizar esta diminuição produtiva para aumentar a sua vantagem sobre a pequena burguesia e os trabalhadores. Perante uma crise de sobreprodução, travar a produção e manter, no quadro do possível, o consumo é uma operação de consolidação e ajuste, que pode constituir-se como um balão de oxigénio para o modo de produção capitalista e para a elite cada vez mais rica que dele vive e que o domina. A paragem ou diminuição da produção ou outros serviços, por parte de todos os grupos económicos ou empresas, não tem os mesmos efeitos num grande grupo económico ou numa pequena empresa. Aliás, a evolução do consumo, num cenário de manutenção ou quebra lenta num vasto conjunto de bens, acompanhada da paragem ou diminuição intensa do recurso ao trabalho (aumento forte do volume do exército industrial de reserva e diminuição do custo do trabalho), consome pouco capital fixo e muito stock, ainda por cima num contexto em que se potenciam as especulações em função da lei da oferta e da procura. Eis uma fórmula – premeditada ou não – para o combate eficaz e poderoso à lei da baixa tendencial da taxa de lucro.
Essa desigualdade é ainda mais extrema entre o grande capitalista e o trabalhador. Enquanto que o grande accionista de um grande grupo tem condições para viver meses ou anos, ou mesmo vidas, sem produção, o trabalhador não pode passar sequer um mês para viver, já que a sua sobrevivência depende da capacidade de venda da sua força de trabalho.
A crise económica e financeira latente no capitalismo mundial e que tem sido gerida passo a passo por governos de todo o mundo, transferindo riqueza pública para accionistas e gestões privadas, terá um novo desenlace. Resta saber se a capacidade de denúncia e combate dos trabalhadores será suficiente para travar avanços dos capitalistas e da grande burguesia ou se os estados ao serviço dessa classe conseguirão impor retrocessos. Não são os vírus que fortalecem o Serviço Nacional de Saúde, mas o investimento. Não é o hino cantado à janela que faz patriotismo, mas a solidariedade entre gentes da mesma classe.
Apesar de o hino que o corretor da bolsa canta ser o mesmo que canta o accionista de um monopólio e o mesmo que canta o operário, as suas pátrias são completamente diferentes. Enquanto que o hino de um negro da periferia pode ser caboverdeano e a sua pátria ser a mesma que a do operário branco e nascido em Portugal no bairro ao lado.
A necessidade de fazer frente às quebras produtivas, a desresponsabilização dos grandes grupos económicos perante os trabalhadores e vínculos laborais, a utilização de mecanismos legais como o lay-off para assegurar a manutenção da rentabilidade das acções em bolsa, a transferência constante de capitais para a banca e a instabilidade de uma banca endividada, quer no âmbito da política monetária, quer no âmbito do endividamento externo ou da perda de capitais próprios, estão já a ser utilizadas pelos abutres que voam em círculos sobre os países mais expostos à espera dos cadáveres do CoVID-19.
Os juros da dívida a 10 anos de Portugal, Itália, Grécia e Espanha aumentaram 27%, 15%, 42% e 36% (no momento em que escrevo) apenas nos últimos dias como resultado do stress a que o CoVID está a sujeitar essas economias. No mesmo momento em que a Itália pede ajuda a Venezuela, Cuba e República Popular da China para obter materiais e meios humanos de medicina e prevenção, os mercados e seus autores preparam o novo assalto aos cofres desses povos. Ao mesmo tempo que precisamos de um serviço nacional de saúde mais forte, de um aparelho produtivo mais robusto, as garras do capital já se lançam sobre a dívida dos países que até hoje acumulam mais dívida porque a União Europeia não lhes tira a pata de cima.
Quando estive na Venezuela, em 2017, visitei uma fábrica de produção alimentar, gerida e dirigida pela União Cívico-Militar – uma aliança povo-força-armada da Venezuela mais consolidada do que a sua congénere portuguesa Povo-MFA – que assegurava a produção de cabazes que seriam distribuídos a todo o país através das comissões de voluntários organizadas em cada bairro e freguesia. O capitalismo abandonou e boicota activamente a produção e a economia venezuelana, mas o povo não deixou de ter acesso aos bens fundamentais porque se criou uma resposta fora do modo de produção capitalista. Não há exploração de trabalho, não há criação de capital, não há mais-valia, mas há arroz, atum enlatado, ovos, óleo, azeite, massas, queijo, salsichas, leite em pó, bolachas e bens de limpeza e higiene básicos. Aqui, se a grande distribuição falha, já nem a fábrica de rações de combate da Manutenção Militar do Beato temos para situações de emergência, pois externalizámos a alimentação de combate dos militares portugueses ao único país com quem temos fronteira terrestre. A submissão aos interesses económicos, por via tanto do despesismo como do economicismo, destruiu a soberania e autonomia do país. Quando tantos protestam a valorização que os comunistas fazem de soberania, é isto que contestam, a nossa capacidade de decidir sobre o nosso próprio futuro. Só podemos decidir o futuro se tivermos com que o construir. A soberania alimentar, a soberania política, a soberania económica e a imprescindível soberania monetária são elementos fundamentais para uma política que seja capaz de fazer frente aos picos e depressões do capitalismo e simultaneamente nos prepare para superar esse modo de produção e o domínio dos monopólios sobre os estados, os povos e as nossas vidas.
Não esperamos de governos de PS, PSD e CDS, capachos do costume dos interesses económicos nacionais e transnacionais, autores morais e práticos da ocupação da economia e política nacionais pela troika estrangeira, que façam frente ao assalto, nem que contestem o funcionamento dos mercados da dívida soberana e a integração do risco da banca privada nos juros da dívida pública. Para o capitalismo só existe um cataclismo: a revolução socialista.
A pandemia pode alertar para as fragilidades do capitalismo, mas não o resolve. Ao mesmo tempo, será pretexto para a maior concentração e acumulação, com a destruição de economias periféricas e a aglutinação de actividades sob a asa de monopólios cada vez maiores. Trabalhadores sem emprego e estados depauperados para assegurar mínimos aos trabalhadores e máximos aos patrões. Enquanto que um trabalhador receberá uma parte do salário, aos donos dos hospitais privados em requisição civil, duvido que o governo se proponha a pagar apenas um terço do preço de custo. O isolamento social pode ser físico, mas nada isola os interesses de classe entre trabalhadores. Serão os mesmos, nem que separados por fronteiras fechadas. E serão esses interesses que para sempre as abrirão.