J: judeu

Teoria

J: judeu

Um judeu é alguém que tem no judaísmo a sua religião. Em torno do judaísmo, como em torno de todas as religiões, gerou-se uma cultura riquíssima que merece ser celebrada e preservada. Ainda assim, o “povo judeu”, enquanto entidade étnico-nacional com uma história e uma cultura vinculada a um lugar, é uma invenção nacionalista do século XIX baseada no mito de um exílio forçado. Como o historiador israelita Shlomo Sand demonstrou no livro “Como o Povo Judeu foi Inventado”, o judaísmo já foi uma religião proselitista que se espalhou entre povos tão diferentes e longínquos como berberes, himiaritas e cázaros. A ideia de um “povo judeu” uno e minimamente coeso só é possível negando as diferenças (veja-se como Israel trata os judeus etíopes) e aceitando como realidade histórica a chamada “diáspora judaica”: uma lenda moderna sobre um retorno à “idade dourada” tão bem alicerçada em fontes primárias como a existência do povo ariano.

No seu ensaio sobre “A Questão Judaica”, Marx não só era claro sobre a falsidade histórica da identificação dos judeus com o “povo hebreu” como condenava a tentativa de o inventar: “opondo à nacionalidade real a sua nacionalidade quimérica e à lei real a sua lei ilusória, crendo-se no direito de manter-se à margem da humanidade, a não participar, por princípio, do movimento histórico, e a aferrar-se à esperança de um futuro que nada tem a ver com o futuro geral do homem, considerando-se membro do povo hebraico, que diz ser escolhido. A título de que, então, aspirais à emancipação? Em virtude de vossa religião?”.

Ponto de ordem à mesa: não faz qualquer sentido culpar os judeus pelo que fazem os israelitas; o povo semita não existe; o povo hebreu também não (do ponto de vista linguístico, o árabe é tão semita como o hebraico) e ser anti-sionista não é ser anti-semita. Israel é um Estado colonial baseado no sionismo, uma ideologia nascida entre as comunidades ashkenazi do centro e Leste da Europa que advoga a construção de um etno-estado judaico como solução para séculos de perseguições e discriminações. Não se trata, contudo, de uma ideologia consensual no universo do judaísmo. Nunca o foi, mesmo entre as comunidades judaicas europeias que a inventaram. Note-se, a este propósito, que um dos Três Juramentos talmúdicos proíbe a construção do Estado de Israel. A maioria dos israelitas não é portanto árabe, nem hebraica, nem semita: é europeia. Uma maioria europeia instrumentalizada pela ideia de “povo judeu” e pela recuperação de uma suposta terra prometida por Deus que não se pode levar a cabo sem uma limpeza étnica (ou “transferência”) da população residente.

A ambiguidade do termo “povo” (e os alentejanos, são um povo?), somada ao forte sentimento de identidade e comunidade que resultou da segregação, perseguição e discriminação a que, ao longo dos séculos, os judeus foram submetidos favoreceu a emergência da ideia nacional de um  “povo judeu” como um sujeito separado do povo português ou francês e titular do direito de auto-determinação. Por outras palavras, se o “povo judeu” existe tem direito à auto-determinação e a criar um Estado, o que daria ao “povo hindu” e ao “povo muçulmano” o mesmo direito.

No contexto actual, a afirmação do “povo judeu” serve de instrumento sionista para justificar os crimes contra a humanidade de um Estado colonial, confessional e genocida que serve a agenda do imperialismo.

Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um instrumento rápido para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.

1 Comment

  • Guilherme

    23 Junho, 2021 às

    Não acreditamos mais que uma gota de sangue preto faz uma pessoa negra, não porque pensamos que é preciso mais do que uma gota, mas porque não acreditamos que existe algo como sangue preto. O que pensamos, em vez disso, é que práticas sociais (como Jim Crow, nos EUA) racializaram tanto as populações negras quanto as brancas.

    Claro, as pessoas que inventaram e aplicaram Jim Crow pensaram que existia algo como sangue negro e, embora estivessem enganados, as suas opiniões eram pelo menos coerentes: se existem coisas como sangue negro ou genes brancos, então as pessoas quem os tem são, de facto, pretos e brancos.

    Uma vez que foi descoberto que isso não era verdade, no entanto, não havia mais motivos para as pessoas continuarem a ser tratadas como negras ou brancas.

    Se eu disser que te trato como negro porque acho que tens genes negros, estou a dar-te um mau motivo; se eu disser que te trato como negro não porque tens genes negros, mas porque eu costumava pensar que tinhas genes negros, não te dei nenhuma razão.

    O cerne é o mesmo quando as pessoas a quem a raça foi imposta a impõem a si mesmas. Algumas das mulheres que foram queimadas como bruxas podem ter acreditado que eram bruxas. Mas eles estavam errados.

    Numa das primeiras defesas da construção social, Sartre descreveu um judeu não como alguém com sangue judeu, mas como alguém que os outros consideram ter sangue judeu. E o que ele recomendava era, essencialmente, escolher ser o que eles dizem que tu és. Mas como, exatamente, é que podemos seguir este conselho? Se tu pensas que é judeu apenas porque eles pensam que tu és judeu, e eles pensam que tu és judeu apenas porque acreditam no sangue judeu, em que consiste o teu judaísmo senão um apoio do erro deles?

    É importante levantar, sempre que possível, o ceticismo sobre raça, e, mais importante ainda, ao mesmo tempo, o ceticismo sobre o valor do anti-racismo. Não porque o anti-racismo seja por si só errado (não é), mas porque, na medida em que a oposição racista/anti-racista tem vindo a definir os termos do que entendemos como justiça social, deixa intactas as condições de injustiça social.

    As irmãs Karen e Barbara Fields, autoras da excelente e subestimada obra de 2012, “Racecraft”, argumentam que ‘liberais’ e ‘progressistas’ e ‘porta-vozes da ação afirmativa’ permanecem ‘incapazes de promover ou mesmo definir o que querem como justiça, sem ser aumentando a autoridade e o prestígio de raça’, mostrando assim uma falha em compreender que o anti-racismo – que é um compromisso com ‘a realocação do desemprego, pobreza e injustiça ao invés de sua abolição’ – pode ser tão útil para o capitalismo quanto o racismo tem sido.

    À medida que a hegemonia académica e cultural americana se espalha, infelizmente, pelas humanidades europeias, é crucial traçar uma posição que se afirma contra a reificação de raça. Quando as pessoas deixaram de acreditar na realidade biológica dos unicórnios, não começaram a acreditar nos unicórnios como uma construção social porque a ordem económica de ninguém era sustentada pelo unicórnio. Mas agarramos-nos à raça – ao racismo e ao anti-racismo – porque raça, ao contrário do unicórnio, parece ser algo sem a qual não podemos viver.

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