Não há mal que sempre dure, nem as figuras que o preconizam são eternas. Morreu Henry Kissinger, famigerado belicista, criminoso de guerra, responsável por várias das maiores atrocidades da história contemporânea, que se contam em milhões de mortos. Os portões férreos do inferno estão franqueados para o receber.
Kissinger, como Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, foi mentor, estratega e executador das políticas externas norte-americanas, que resultaram numa mortandade de milhões pelo mundo fora.
Um legado de sangue
Durante a guerra do Vietname, o Camboja, país neutro no conflito, foi incessantemente bombardeado pelos Estados Unidos, alimentando uma esperança de eliminar as forças comunistas que operavam a partir das fronteiras. O resultado da ação, pessoalmente idealizada, e autorizados cada um dos três mil e oitocentos e setenta e cinco, por Kissinger, traduziu-se num genocídio que contabilizou entre cinquenta a cento e cinquenta mil mortos só naquele país, “tudo o que mexa e qualquer coisa que voe”, dissera sobre os alvos a considerar no bombardeamento.
A terraplanagem de Kissinger à lei da bomba, alastrou-se para o próprio Vietname e ainda o vizinho Laos, estimando-se que entre os três países a quantidade de bombas largadas dobrou a que foi usada na Segunda Guerra Mundial em toda a Europa e Ásia, os civis eram alvos deliberados desta chacina norte-americana, com a escusa da guerra.
Operação Condor
A campanha de terror e repressão americana, com Kissinger à cabeça, veio a tomar conta do palco sul-americano. Os americanos arregimentaram aliados nos blocos políticos de extrema-direita e fascista destes países, promovendo assassinatos e operações de inteligência que resultaram na queda de governos democráticos e na morte de milhares, Henry Kissinger, diplomata experienciado, explicava aos seus aliados fascistas que os americanos estavam empenhados na guerra contra o comunismo, e que se não os americanos outra qualquer potência estariam de pé fincado no subcontinente.
No Chile financiou-se e apoiou-se militarmente o golpe de estado do amigo Pinochet, que deixou um rasto de mais de quarenta mil mortos, na Argentina, o processo conhecido como Guerra Suja, perseguiu, torturou e matou entre dez a trinta mil, sobretudo, ativistas, estudantes, jornalistas, políticos, camponeses e guerrilheiros de esquerda. No Brasil o apoio declarado à ditadura militar que derrubou o governo de João Goulart, que viria a morrer em circunstâncias pouco claras, resultou num genocídio indígena a que acresceu a normal perseguição, tortura e morte à esquerda e, em particular, aos comunistas brasileiros. O discurso negacionista do regime militar e fascista, sobre este processo repressor, veio mais tarde a ser negado pelos próprios americanos, que não só afirmariam que a cúpula dirigente da ditadura conhecia e aprovara todos os assassinatos e acções criminosas, como também o próprio conhecimento e consentimento da inteligência americana.
Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador e Peru, foram também palco para este arquivo de terror, promovido e orientado em grande linha por Henry Kissinger, e ainda que seja difícil atribuir à operação Condor números concretos, é certo que dezenas de milhares foram mortos e assassinados, outras dezenas de milhares dadas como desaparecidas e centenas de milhares encarceradas por longos anos.
Holocausto a leste
Quando rebentou a Guerra da Independência do Bangladesh (então território do enclave Oriental do Paquistão), Nixon e Kissinger alinharam-se novamente pela sua sanha anticomunista, reconhecendo no movimento popular de libertação um posicionamento antagónico aos seus interesses na região e, em particular, no contexto da Guerra Fria e combate à União Soviética. O processo político complexo, levou com que os norte-americanos apoiassem numa fase inicial, financeira e logisticamente o governo do Paquistão que promovia um genocídio contra o povo bengali naqueles territórios mais a leste. Com o envolvimento da Índia no conflito, Kissinger decidiu-se pela relocalização de recursos financeiros e militares, para o governo do enclave oriental do Paquistão, então uma peça importante na geoestratégia antissoviética, para uma maior efetividade no combate aos indianos, o que reforçou a matança paquistanesa aos bengali, agora apoiados pelos vizinhos da Índia. Segundo algumas fontes ocidentais o número de bengaleses mortos chegam aos quinhentos mil, mas as autoridades daquele país afirmam que a cifra estará entre os três e os cinco milhões. Sobre os indianos Nixon e Kissinger classificaram-nos, após a sua entrada na guerra, como “sacanas” e que precisariam de uma “fome em massa”, provavelmente relembrando morbidamente os tempos da fome imposta no Raj Britânico, por Wiston Churchill e o seu governo, que terá matado até três milhões de indianos.
Timor-Leste e Portugal
Quando Kissinger reuniu com Suharto, famigerado presidente indonésio, em 1975 teve conhecimento da intenção de a Indonésia invadir o território de Timor. Antevendo mais um cenário de mortandade e crimes de guerra, Henry Kissinger e Gerald Ford, então presidente estado-unidense, anuíram e autorizaram a invasão, deixando só o conselho a Suharto que “faça o que fizer, é importante que seja bem-sucedido rapidamente”, numa tradução tosca, porém real. Seguiu-se uma advertência face à impaciência de Suharto em invadir Timor, que procurasse, tanto quanto possível, evitar o uso de armamento americano, que o fazendo não se levantariam muitas questões sobre o apoio americano e que estes procurariam criar a justificativa da ação militar em torno de uma forjada autodefesa, argumentário tanto comum à altura como hoje. Sabiam os norte-americanos que a intervenção e posterior genocídio, morreram mais de duzentos mil timorenses durante a ocupação, não seria bem vista internacionalmente, mas o central era, como o houvera sito até então, a procura pela hegemonia mundial pelos Estados Unidos.
Em Portugal, aquando da revolução, Kissinger, adepto de Salazar, chegou a dar o país “perdido” para os comunistas, olhando com um pessimismo empírico para o processo revolucionário, quiçá lhe ditasse a sua experiência terrorista que nem perante o assalto fascista e colonial os movimentos populares perdem a determinação na busca pelas suas aspirações. No entanto, preocupado com o eventual alastrar dos ânimos revolucionários portugueses a Espanha, França, Itália e Grécia, não se desocupou de proceder em coerência com a habitual ingerência interna americana, e com Frank Carluci, com os dólares chovendo do céu, ditou tanto quanto possível o futuro da revolução portuguesa, encontrando em Mário Soares um meio termo entre a imparável e verdadeira vontade do povo português para caminhar rumo ao socialismo e o travão necessário para tal coisa acontecer. Do financiamento dos movimentos maoístas, descontextualizados à realidade concreta do movimento operário português, aos movimentos da social-democracia e da democracia cristã, tudo valeu para por um lado dividir a vanguarda organizada dos trabalhadores portugueses, e por outro embarcar nas promessas enviesadas à direita de uma democracia do tipo liberal e das suas vantagens, a tempo e espaço, que mesmos estes, ou grande parte destes, defenderam de forma falseada a construção de uma sociedade socialista, sabendo-a vontade maior do povo português.
Os Fantoches de Kissinger
Desdobram-se os pesares e os lamentos, a morte, santa redentora, tudo quer lavar, como quis antes o Nobel da paz, e a generalidade da imprensa e dos senadores ocidentais cantam loas ao homem tão pequeno, mas nada se esquecerá, menos se perdoará, a história já o julgou.
A Henry Kissinger que lhe valha a unanimidade que granjeia entre a burguesia agradecida pelo poder, e ainda a afeição de liberais e fascistas, pela promoção dedicada e à força da sua sobrevivência, durante décadas e em vários pontos do globo. É o que lhe resta valer, que na sua busca por uma eternidade, provavelmente garantida por uma brevidade, se guardará o seu nome, junto de outros, no caixote de lixo da história, que por aqui o que verdadeiramente lamentamos é o rasto de sangue de milhões e milhões de vida, ceifadas em nome do império, mas não em vão, que são memória presente da verticalidade dos povos e da sua ousadia em enfrentar os males deste mundo, acreditando que ainda haverá de ser um justo.