Macbeth e Anna Karenina

Nacional

Recentemente tive a oportunidade de assistir ao drama lírico Macbeth, de Giuseppe Verdi, no Teatro Nacional de São Carlos. São momentos de rara beleza e encanto proporcionados pela junção tão elegante que a arte da música e a arte performativa atingem enquanto nos transmitem uma história. O problema de tal afirmação prende-se mesmo pela raridade dos mesmo. Penso que mesmo para os menos melómanos, é difícil ficar indiferente a tal espectáculo e, no entanto, contam-se pelos dedos as pessoas que conheço que já assistiram a um.

Entrar no TNSC é como uma pequena viagem no tempo, não falo da sensação transmitida pelos traços neoclássicos nem da ornamentação ostensiva de um barroco tardio, mas sim da fauna que o habita, com a sumptuosidade burguesa de outras épocas, que se ajusta como uma luva ao cariz burguês e mesmo à sua clara representação aristocrática tão bem evidenciada pela estratificação vertical dos camarotes culminando na imponência do camarote real. Mesmo para alguém muito desatento é evidente a presença suficiente de raposas, visons e chinchilas para um jardim zoológico completo, tal como um sem fim de adereços que se podem visitar em qualquer montra da Av. da Liberdade.

Esta sensação dificilmente escapará a uma correlação entre a fruição cultural que ali se pretende e o seu acesso. Não será difícil verificar, experimentem comprar um bilhete, o que custa obter um bilhete para as raras sessões e poucas dezenas de cadeiras existentes no magnífico TNSC.

Por ocasião de uma viagem a Cuba tive a sorte de estar em Havana durante o Festival de Teatro da cidade. Logo que o motorista do táxi onde seguia me informou de tal, enquanto passávamos em frente do Teatro Nacional de Cuba, peço-lhe para me apear por uns minutos para comprar um bilhete para um espectáculo, Anna Karenina por indicação do motorista que me disse ter assistido à estreia e ter saído lavado em lágrimas. Estava há minutos em Cuba e já sorria pela minha fortuna em ter calhado entrar em tal táxi e por me encontrar em época de festival.

Chegado o dia tão ansiado, dirigi-me ao Teatro que figurava sumariamente no guia como um edifício, aparentemente, de importância arquitectónica nula (?). Enquanto pensava no meu ar andrajoso de turista atravessei a Praça da Revolução deparando-me com uma multidão que já se juntara à porta. Num olhar rápido apercebi-me que me encontrava sobretudo rodeado de jovens, que em pequenos grupos conversavam entusiasticamente. Ainda espantado pela etnografia, começo a ouvir as discussões em torno da obra de Tolstói aprendendo não só o enredo como várias interpretações do mesmo e o seu contexto histórico, fiquei ainda a saber várias opiniões sobre outros espectáculos do festival e assisti, incrédulo, a discussões substanciais de preferências musicais e literárias com a leveza e paixão das conversas que encontramos num domingo de bola. No fim era isso mesmo, 2500 pessoas, num edifício de arquitectura nula, com paredes simples e de ornamentação nula, um chão com uma modesta carpete seguramente de valor nulo ou quase, cadeiras normalíssimas a roçar a nulidade até por força do seu aspecto usado, de candeeiros simples e, claro, nulos, em êxtase total, de pé numa ovação após uma gigante produção de qualidade imortal. Lembrei-me das lágrimas do motorista de táxi enquanto me debatia contra a comoção, no meu caso não só provocada pela tragédia da última cena mas pela beleza de tudo o que me rodeava.

* Autor Convidado
Tiago Domingues